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“Cientistas acobertam inação dos governos no clima”

Pesquisador alemão diz na revista Nature que é tarde demais para a meta de 2 graus, que proposta de emissões negativas é “ficção científica” e que academia precisa parar de ajustar premissas ao otimismo dos políticos

06.05.2015 - Atualizado 11.03.2024 às 08:26 |

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O cientista político alemão Oliver Geden não parece muito interessado em fazer amizades no governo. Enquanto vários de seus colegas acadêmicos e políticos do mundo inteiro vêm transmitindo a mensagem de que ainda é possível evitar o caos climático se os líderes tomarem as decisões certas na conferência de Paris, Geden grita que o rei está nu: para ele, o objetivo de estabilizar o aquecimento global abaixo de 2 graus Celsius já não pode ser alcançado. E, ao insistir no contrário, os cientistas estão ajudando a acobertar o fracasso dos governantes em cortar emissões.

Num artigo publicado on-line na edição de hoje da revista científica Nature, Geden diz que seus colegas cientistas e economistas do clima precisam “manter a integridade” e recusar-se a emprestar suas credenciais para governos que querem dourar a pílula do que pode ser alcançado pelas negociações internacionais.

Segundo o pesquisador, que serviu em dois governos de seu país e hoje trabalha no Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e Segurança, existe hoje uma espécie de conluio entre acadêmicos e políticos para defender o “mantra dos 2 graus Celsius”, que ele diz ser “uma bobagem”. Para Geden, o fato de as emissões mundiais de gases-estufa terem crescido 40% desde 1990, ano em que deveriam ter começado a cair, torna impossível a estabilização no prazo necessário.

“Há 15 anos as pessoas estão dizendo ‘o tempo está se esgotando, mas nós ainda podemos conseguir se agirmos agora’. Olha, 25 após 1990, período em que as emissões aumentaram 40%, algo deve estar errado com essa afirmação. Por que o tempo ainda não acabou, já que o mundo não agiu?” – questiona.

Para tucanar o fracasso, por assim dizer, foi criada a figura das “emissões negativas”: todos sabem que o novo regime climático internacional, a ser acordado em Paris, é incapaz de produzir um corte de emissões que leve aos 2 graus, mas seria possível chegar lá retirando ativamente carbono da atmosfera. A técnica mais conhecida para isso é o chamado BECCS, uma combinação de bioenergia com a captura de carbono de termelétricas.

O problema, diz Geden, é que emissões negativas são “ficção científica”: “A quantidade de terras necessárias somente para plantar toda a biomassa é de 500 milhões de hectares até o fim do século. Isso equivale a uma vez e meia o território da Índia”, afirma. “Eu diria que isso é politicamente inviável.”

O texto tem causado polêmica antes mesmo da publicação, e deve receber, segundo o autor, “uma onda de refutações”.

Alguns cientistas, porém, estão agradecendo a Geden por tirar o esqueleto do armário. “O comentário injeta uma dose saudável de realismo no discurso sobre a interface entre política e ciência”, diz o meteorologista Jochen Marotzke, conterrâneo de Geden do Instituto Max Planck e membro do IPCC, o painel do clima da ONU. “Nós, cientistas, precisamos nos manter firmes ao lado das melhores análises possíveis e comunicá-las aos formuladores de políticas, mesmo que elas não sejam bem-vindas.”

Leia a seguir a entrevista que Geden concedeu ao OC, de seu escritório em Berlim:

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O acordo de Paris parece um mecanismo à prova de falhas: todo mundo sabe que não vai ser possível chegar aos 2oC, mas tudo bem, porque Paris é só o começo. Qual é o problema dessa visão?

Eu acho que nós aprendemos muito desde Copenhague, então teremos um acordo multilateral este ano. Ocorre que todas as INDCs serão voluntárias. Se fizermos uma avaliação, veremos que há um buraco imenso entre o que elas prometem e o que é necessário, e vários think tanks e ONGs vêm falando de mecanismos de aumento de ambição. Eu duvido muito que isso funcione.

Eles estão tentando emplacar essa história de que ainda dá para chegar aos 2 graus. Eu realmente não acredito nisso. Porque, se você falar sério, ninguém sabe se o mundo vai ficar abaixo de 2 graus, porque há muitas variabilidades naturais e muita incerteza. Nós nunca saberemos até chegarmos lá. Mas você pode falar sobre o espaço de carbono equivalente aos 2 graus calculado pelos pesquisadores do IPCC. Nós nunca conseguiremos ficar abaixo desse espaço de carbono [1 trilhão de toneladas, metade já emitida; estima-se que a outra metade vá ser emitida nos próximos 25 anos] e foi por isso que os economistas inventaram o conceito as emissões negativas. Eles inventaram uma dívida de carbono que possa ser paga mais tarde. Isso é uma premissa questionável, e essa dívida está crescendo. Nós deveríamos ao menos estar falando nisso.

Por que não dá para ultrapassar o orçamento e depois sustentar emissões negativas?

Eu não sou contra a ideia básica, mas essa quantidade de emissões negativas calculada nos modelos de mitigação tem crescido nos últimos anos, porque as emissões não estão diminuindo no mundo.

Se você olhar as letras miúdas de vários artigos científicos sobre emissões negativas, e isso nunca está na capa dos artigos, a quantidade de terras necessárias somente para plantar toda a biomassa – a tecnologia mais popular de emissões negativas no momento é a bioenergia combinada com captura e armazenamento de carbono – é de 500 milhões de hectares até o fim do século. Isso equivale a uma vez e meia o território da Índia. Eu diria que isso é politicamente inviável. É um tipo de ficção científica.

Os políticos deveriam discutir e levar realmente a sério as consequências disso. Porque, se dissermos sim à meta de 2 graus e considerarmos que ela pode ser atingida, estaremos dizendo sim a 500 milhões de hectares de biomassa somente para essa finalidade. E obviamente ninguém vai fazer isso.

O sr. diz que o “mantra dos 2 graus Celsius é bobagem”. É bobagem porque nós não vamos atingi-lo ou porque a cifra é, ela própria, questionável?

O que eu acho bobagem é que há 15 anos as pessoas estão dizendo “o tempo está se esgotando, mas nós ainda podemos conseguir se agirmos agora”. Olha, 25 após 1990, período em que as emissões aumentaram 40%, algo deve estar errado com essa afirmação. Por que o tempo ainda não acabou, já que o mundo não agiu? Claro que houve ações, mas as emissões não estão diminuindo. Então, se apegar a essa afirmação é uma bobagem. É claro que as emissões precisam cair: elas já deveriam ter caído há vários anos. Quando dizem que nós ainda podemos conseguir, para colocar as coisas de um jeito delicado, os cientistas estão acobertando a inação dos políticos.

A Declaração da Terra, que saiu há alguns dias, afirma precisamente isso: ainda dá tempo, 2015 é o ano do vai ou racha.

Desde a Rio-92 nós já foram 23 anos de “vai ou racha”. O “vai” ninguém nunca viu, mas o “racha” todos vimos. Sempre dizem “esta é a última chance”, e nada acontece. E no ano seguinte eles vêm de novo e dizem, “esta é a última chance, o mundo está numa encruzilhada” – há várias metáforas que eles usam –, mas nada acontece. Então o que eu estou pedindo, pelo menos do lado dos conselheiros científicos, é coerência: se 2015 é o ano do “vai ou racha”, o que eles vão dizer em 2016 se não tiver nenhum “vai”, se os políticos não entregarem a parte do “vai”?

E é por isso que muitos cientistas se sentem desconfortáveis com o processo. Há um mercado do lado político, uma demanda por cenários positivos, e muitos dos que trabalham com modelos econômicos calculando emissões negativas dizem que não acreditam que isso vá acontecer ou que seja viável. Eles acham dúbio, mas não querem se posicionar dizendo, “tem uma chamada pública para um estudo sobre emissões negativas. Nós não vamos disputar, porque não acreditamos em emissões negativas”.

Não há mercado para estudos que digam, “olha, é tarde demais, os governos falharam”. Você pode, obviamente, discutir onde está a linha. Mas os conselheiros científicos precisam traçar essa linha em algum momento e dizer, “nós não vamos mais trabalhar com emissões negativas e vamos parar de fazer suposições cada vez mais otimistas sobre a capacidade da economia global de se descarbonizar”.

O sr. diz em seu artigo na Nature que as premissas dos modelos econômicos ficam mudando tanto que não dá mais para falar em formulação de políticas baseada em evidência, mas sim em formulação de evidências baseada em políticas. Como assim?

No AR4 [Quarto Relatório de Avaliação do IPCC] eles diziam que o pico global de emissões tinha de ser em 2015. Agora estão dizendo que é em algum momento antes de 2030. Eles deveriam explicar por que são mais otimistas agora do que eram sete anos atrás. O público deveria responsabilizar esses cientistas, fazê-los explicar por que eles acham que isso vai acontecer.

Mesmo que você assuma que há inconsistências no mundo da formulação das políticas públicas, e sempre há, eu gostaria de ver consistência na comunidade científica. Eu sei que soa rude dizer que os conselheiros científicos precisam manter a integridade, mas é preciso chamar a atenção das pessoas.

Mas o otimismo não pode ter um fundamento no mundo real? Ninguém poderia prever, por exemplo, que os preços da energia solar cairiam tão mais rápido do que as previsões e que as renováveis se expandiriam tanto.

É claro que você não sabe como a tecnologia vai evoluir, mas eu acho que vimos exemplos positivos de renováveis, no setor elétrico, por exemplo. Acontece que, se você olhar para a fatia de energias de baixo carbono na matriz mundial, a porcentagem não mudou muito nos últimos 15 anos, porque a quantidade de energia usada tem crescido. Então, se nós quisermos chegar a perto de zero, temos de descarbonizar não apenas o setor elétrico, mas também os transportes, onde não há muita coisa acontecendo.

O Brasil é uma exceção por causa dos biocombustíveis, mas isso também é contestado por causa das emissões do ciclo de vida. Não há muito acontecendo no setor de construção, nem mesmo nos países da União Europeia.

Talvez possamos ter um debate honesto sobre isso e talvez eu me convença e mude minha posição, mas muitos economistas do clima evitam a questão ou a discussão do que significam emissões negativas. Eles evitam discutir isso com o público e com os políticos. Muitos modeladores dizem que é loucura o que estão fazendo com as emissões negativas, como expandiram orçamento de carbono global.

É como se criassem um carbono zumbi: são emissões que já foram descontadas, mas que ainda caminham entre nós.

De certa forma. Ironicamente, este é um conceito que os políticos entendem bem: você tem um orçamento e dentro dele cria a possibilidade de uma dívida. Então nós esperamos que essa dívida vá ser paga, e você não pode nem questionar a factibilidade política dessa premissa. Eu suspeito que todos os anos os políticos viriam com um estratagema diferente para rolar essa dívida.

Por outro lado, o sr. não acha que essa abordagem otimista é necessária para manter a bola rolando e o setor privado engajado?

Sim, na essência eu concordo com esse argumento. Se você tem uma narrativa política e quer que essa narrativa funcione dizendo que há sacrifícios agora, mas no final das contas será para o bem maior, então ao longo dessa trajetória você precisa criar sucessos. É preciso haver uma história positiva.

O problema é que, se você cria metas irreais – e eu diria que 2 graus é uma meta irreal – você cria um problema, porque botar nas contas algo que não dá mais para realizar fere a sua narrativa.

E é neste ponto que nós estamos agora: os formuladores de políticas e os cientistas temem que essa narrativa positiva vá ser destruída, mas o problema é que, se você cria uma narrativa na política climática que é “ou/ou”, quer dizer, ou nós fazemos isso para ficar abaixo de 2 graus ou será uma catástrofe… é bastante atípico no mundo da política ter uma meta “ou/ou”. Você fala mais de progresso relativo.

Eu acho que nós estamos numa armadilha agora, com todo esse foco em ficar ou não abaixo de 2 graus. Mesmo os cientistas estão dizendo, não vamos ficar abaixo de 2 graus, mas, se fizermos isso e aquilo, ainda podemos limitar o aumento inicial a 2,5 graus e depois desenvolver soluções para voltar a 2 graus mais tarde, isso também poderia funcionar, muitas histórias em políticas públicas funcionam assim, mas no discurso da política de clima a meta de 2 graus, para muita gente no mundo industrializado, tornou-se sacrossanta. E, claro, você ainda tem o discurso do 1,5 grau, que o IPCC acha, embora não diga abertamente, que é completamente irreal.

Não há soluções fáceis, nem poderia haver, porque desde 1990 as emissões cresceram 40%. Não podemos esperar nenhuma saída fácil, e eu acho que a missão dos conselheiros científicos governamentais é explicar suas premissas, mesmo que essas premissas sejam contestadas politicamente.

O sr. certamente não fará amigos no governo com esse artigo.

Nós somos o maior think tank de política externa da Europa, e somos completamente financiados pelo governo. E eu trabalhei em dois ministérios do governo alemão. Eles me conhecem, mas enquanto instituto não é nossa tarefa encobrir a inação do governo. Então, se eles se irritam, que fiquem irritados. Não dependemos de editais, não submetemos propostas para editais, e podemos nos dar ao luxo de não fazê-lo. Muitos cientistas não podem, porque eles precisam organizar o fluxo de caixa de seus institutos todo ano, então fica impossível para eles irritar o governo. Muitos cientistas e institutos gostam disso que eu estou fazendo, porque eles acham que nós precisamos ter um debate mais honesto.

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