Conama está de volta, mas ainda sem paridade
Decreto de Lula ressuscita principal colegiado ambiental do Brasil, que terá 114 membros e ampliação da participação social, mas segue dominado pelo governo
DO OC – O Conama está de volta. Um decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, publicado hoje no Diário Oficial da União, faz com que o Conselho Nacional do Meio Ambiente volte a exercer suas funções. A decisão dá nova vida ao colegiado formado por integrantes do poder público e da sociedade civil, responsável por elaborar as políticas públicas a serem implementadas pelo Ministério do Meio Ambiente. O Conama funcionava – ou não funcionava – de forma inconstitucional desde maio de 2019, quando foi desmantelado por um decreto presidencial de Jair Bolsonaro.
Bolsonaro e seu antiministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, nunca esconderam que a destruição ambiental era um projeto de governo. A Blitzkrieg ambiental implementada pelos dois e por Joaquim Leite, sucessor de Salles, envolveu pautas-bomba no Congresso (com o apoio de Arthur Lira), afrouxamento de regras no Executivo, a paralisação do Fundo Amazônia e o desmonte de autarquias como o ICMBio e o Ibama. Um dos primeiros atos dessa guerra contra o meio ambiente foi justamente com a publicação do decreto 9.806 de 2019, que atingia Conama, principal instância colegiada da governança ambiental brasileira e do controle social sobre as políticas de meio ambiente.
Em resumo: a decisão publicada hoje no DOU, que ressuscita o conselho, tem efeito prático, mas também simbólico: representa a volta da sociedade civil ao debate da política ambiental.
O novo Conama terá 114 membros, contra 96 de sua composição pré-desmonte. Isso reflete o aumento no número de ministérios no governo Lula, já que cada pasta da Esplanada tem um representante. A recomposição mantém o governo como maioria no colegiado, descumprindo a recomendação do grupo de transição do governo de fazer uma reconstituição paritária. Na liminar de dezembro de 2021 que sustava o desmonte do Conama (leia mais abaixo), a ministra do STF Rosa Weber também havia alertado contra a “assimetria democrática” – para que o governo não dominasse o colegiado.
O Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima afirmou que fez a opção inicial por devolver o Conama ao que era neste primeiro momento e que instalará uma Câmara Técnica Provisória para discutir a ampliação da participação da sociedade. Também foi criada pelo novo decreto uma Câmara Técnica de Justiça Climática, que havia sido sugerida pela equipe de transição. Por ora, a sociedade civil terá 22 representantes. É uma vitória, dado que chegou a contar com apenas quatro integrantes nos anos Bolsonaro. Mas 22 representantes num conselho formado por 114 pessoas caracteriza uma bela vitória? Será que a sociedade civil está devidamente contemplada?
O Conama foi criado em 1981, por uma lei federal sancionada pelo general João Figueiredo, ainda na ditadura militar. A regulamentação, que de fato tornou-o efetivo, veio nove anos depois, através de um decreto presidencial assinado por Fernando Collor. O conselho é uma espécie de faz-tudo da política ambiental: tem poder consultivo, assessorando o governo com propostas de diretrizes ambientais, mas também deliberativo, publicando resoluções que tratam de proteção ao meio ambiente. Trocando em miúdos, o Conama estipula as políticas ambientais a serem executadas pelo ICMBio e pelo Ibama.
Até a chegada de Bolsonaro ao poder, o Conama contava com 96 integrantes de origens distintas (ministérios, governos estaduais, prefeituras, setores empresariais e entidades ambientais). A presidência do Conselho ficava a cargo do ministro ou ministra do Meio Ambiente.
O decreto de Bolsonaro reduziu o número de conselheiros com direito a voto para 23 integrantes – sendo quatro da sociedade civil. Estes passaram a ser escolhidos por sorteio, o que ficou conhecido como o infame “bingão do Conama”. A justificativa era a clássica “desburocratização”, mas a intenção era óbvia: concentrar todas as decisões da política ambiental nas mãos de Salles e Bolsonaro. De acordo com uma nota técnico-jurídica publicada em janeiro deste ano pelo Observatório do Clima e mais cinco entidades do terceiro setor, o percentual de voto do poder federal passou de 29,7% para 43,5%. Um golpe acionário.
Com o Conama nas mãos, Ricardo Salles viu o caminho livre para passar com sua boiada. Em setembro de 2020, o conselho se reuniu – já então na versão pocket – e derrubou três resoluções que protegiam manguezais e restingas contra a especulação imobiliária. Ou seja, “desburocratizar” era a senha para estender o tapete vermelho para as indústrias do turismo e da construção civil, que a partir de então poderiam erguer resorts sobre dunas e Áreas de Preservação Permanente.
Como era de esperar, o caso foi judicializado. Primeiro pela então Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, que já em 2019 propôs uma ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – contra o decreto inicial de Bolsonaro contra o Conama. Depois, por três partidos – PT, PSB e Rede Sustentabilidade – que pediam a suspensão da resolução que colocava em risco restingas e manguezais.
O desmonte infralegal acabou sendo paralisado por duas decisões liminares concedidas pela ministra Rosa Weber, do Supremo. A primeira em outubro de 2020, em que acolhia o argumento dos três partidos, suspendendo a resolução contrária às restingas e manguezais (o caso seria levado mais tarde ao pleno, onde todos os ministros votariam pela inconstitucionalidade). E a segunda em dezembro de 2021, essa mais abrangente, acolhendo o argumento da PGR que apontava a inconstitucionalidade do decreto assinado em 2019 por Bolsonaro (a decisão liminar se fez necessária depois que o ministro Kássio Nunes Marques pediu vistas do processo, quando já havia quatro votos contrários ao decreto).
Desde então, o funcionamento do Conama foi suspenso, e assim permaneceu, até a publicação do decreto assinado por Lula, que restabelece o colegiado. Num cenário de pós-guerra, em que a política ambiental foi aviltada diariamente, por quatro anos, é crucial restabelecer a normalidade. Mas normalidade não significa paridade. Ainda há um longo caminho na busca de uma política pública realmente participativa. (ROBERTO KAZ)