Na newsletter: Mundo ultrapassará limite de Paris antes do previsto
Newsletter de 13 de janeiro traz crise na TI Yanomami, a chegada do 1,5ºC de aquecimento e os extremos do início de 2024
Quase um ano atrás, no final de janeiro, o país que ainda se recuperava de uma tentativa de golpe de Estado com participação de parte do Alto Comando do Exército foi sacudido pelas imagens chocantes da epidemia de desnutrição que matava o povo yanomami, cujas terras foram invadidas por garimpeiros sob apoio explícito do então Presidente da República e com a conivência de parte do mesmo Exército envolvido no golpe. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou emergência sanitária na Terra Indígena Yanomami e o Ibama iniciou, com a Polícia Federal, uma operação de retirada do garimpo.
Um ano depois, os próprios yanomami denunciam que o garimpo voltou e a fome segue grassando. Segundo dados do governo divulgados pela Sumaúma, até 30 de novembro 308 yanomami haviam morrido, metade crianças menores de 5 anos. Novas fotos de indígenas desnutridos vieram à luz, mostrando que o esforço do começo do ano não resolveu o problema.
Nesta semana, Lula reuniu seus ministros e prometeu R$ 1,2 bilhão para transformar a questão yanomami em assunto permanente, com a criação de uma Casa de Governo para o território indígena. “Não é possível que a gente possa perder uma guerra para o garimpo ilegal”, declarou. Foi um recado velado às Forças Armadas, que entenderam de sabotar as ações na terra indígena, retirando apoio logístico às ações de controle ambiental (que a propósito também estão paradas, devido à greve do Ibama) e de distribuição de cestas básicas. Como você verá abaixo, uma das desculpas dadas pela Defesa para desmobilizar o atendimento a uma crise real em Roraima foi a necessidade de prontidão para uma crise imaginária – o suposto risco de guerra entre a falida Venezuela e a diminuta Guiana.
Os militares brasileiros nunca engoliram os 9 milhões de hectares demarcados para os yanomami em plena faixa de fronteira, nem nunca esconderam a simpatia histórica pelo garimpo na região – na lógica torta dos fardados, os garimpeiros são “nacionais” ocupando a fronteira, em oposição aos indígenas, que decerto vieram de Marte. O presidente, comandante-em-chefe das Forças Armadas, já engoliu uma boa dose de insubordinação ao deixar de punir os generais envolvidos no 8/01. Não pode engolir mais uma agora que há brasileiros morrendo na TI Yanomami.
Boa leitura.
Cariocas tostam a 53ºC enquanto americanos atravessam onda de frio mortífera
A gente nem teve tempo de digerir o que foi 2023, com sua amostra grátis do que é viver em um planeta 1,5ºC mais quente, e o ano de 2024 já começou com extremos a Norte e Sul, pra nos lembrar que tudo sempre pode piorar. Na América do Norte, a perturbação do chamado vórtice polar já causa frio extremo, nevascas e tempestades, que tendem a se agravar no final de semana (sim, Osmar Terra, o aquecimento global também pode causar frio extremo).
A massa de ar frio vinda do Ártico pode gerar anomalias de temperatura de até 15,5ºC abaixo da média nos Estados Unidos, com sensação térmica de -43ºC no noroeste do país. Centenas de recordes de temperatura negativos devem ser quebrados neste final de semana e na semana que vem em todo o país, disse o Serviço Nacional de Meteorologia. A previsão indicava que Calgary, na província canadense de Alberta, poderia ter ontem o seu dia mais frio em 20 anos, com -31ºC. Nessas condições, o congelamento de partes do corpo humano pode acontecer em menos de um minuto em casos de exposição sem proteção ao ar livre.
Enquanto isso, a região central da América do Sul enfrentou na última semana uma onda de calor intenso. Na última quinta-feira, o Rio de Janeiro registrou sensação térmica de 53,4ºC. Principal afetado, o Paraguai registrou quebras de recordes para temperaturas diárias em cinco localidades. Além de Brasil e Paraguai, Argentina e Bolívia também fervem a mais de 35ºC, com possibilidade de piora ao longo do mês. A combinação de El Niño com aquecimento global, que já deixou sua marca em 2023, pode se intensificar no primeiro semestre de 2024, apontam especialistas. Mais aqui.
MUNDO PASSARÁ LIMITE DO ACORDO DE PARIS ATÉ FEVEREIRO
Na última terça-feira (9), o serviço climatológico europeu Copernicus divulgou que o aquecimento global ultrapassou 1,48 °C em relação à média pré-industrial (1850-1900). A temperatura média do planeta entre janeiro e dezembro alcançou 14,98°C, o que fez com que 2023 tirasse por larga margem o posto de 2016 de ano mais quente da história desde que as medições começaram em 1850. Em 2016, a média foi 14,81°C. Todos os dias do ano passado tiveram temperaturas pelo menos 1ºC mais quentes que a média 1850-1900, e em metade do ano elas foram maiores que 1,5ºC, o limite do Acordo de Paris.
Na sexta-feira (12) foi a vez de a Organização Meteorológica Mundial divulgar seu balanço de temperatura de 2023, de acordo com a média de seis bases de dados (inclusive o Copernicus). A conclusão é basicamente a mesma: 1,45ºC de aquecimento no ano acima da média pré-industrial, superando por 0,16ºC o recorde de 2016 (contra 0,17ºC da estimativa do sistema europeu). E 2024 deve ser pior.
Segundo o Copernicus, é provável que o período de 12 meses que se encerra até o mês que vem ultrapasse 1,5°C, lançando o planeta num território climático inexplorado. Na margem de erro da estimativa da OMM, é possível que já tenhamos superado esse limite em 2023 – embora a tendência após o fim do El Niño seja um recuo das médias até o final da década, quando se prevê que o 1,5ºC seja ultrapassado permanentemente.
A resposta da comunidade internacional? Você adivinhou: dobrar a aposta nos combustíveis fósseis. O Brasil se prepara para entrar na Opep+ agora em janeiro; nos EUA, o lobby fóssil está usando a guerra em Gaza como desculpa para uma campanha de mídia milionária louvando a importância dos hidrocarbonetos para a “segurança energética” do mundo, como revelou o The Guardian.
ELEIÇÃO NOS EUA TRAZ RISCO DE CATÁSTROFE PLANETÁRIA
O evento mais importante do ano para o clima está marcado para 5 de novembro, quando os americanos vão às urnas escolher seu próximo presidente. No momento, os nomes favoritos para a disputa são os do atual presidente, o impopular democrata Joe Biden, e do ex-mandatário de extrema direita, o criminoso republicano Donald Trump. Mesmo depois de tentar um golpe de Estado e de prometer que iniciará seu mandato com uma “ditadura de um dia”, Trump ainda apareceu em pelo menos uma pesquisa de intenção de voto com vantagem sobre Biden. Especialistas temem o que sua eventual eleição possa significar para a democracia no mundo, mas de uma coisa ninguém duvida: os EUA, maior produtor de petróleo e segundo maior emissor de carbono do mundo, mais uma vez sairão do esforço internacional de combate à mudança do clima num novo governo do republicano – e podem arrastar outros descontentes do Acordo de Paris junto. Leia as análises sobre o risco Trump do diplomata Rubens Ricupero e do professor de relações internacionais Eduardo Viola.
FORÇAS ARMADAS DIFICULTAM AJUDA A YANOMAMIS, QUE SEGUEM DESNUTRIDOS
Faz quase um ano que o governo federal decretou emergência de saúde na Terra Indígena Yanomami, em Roraima e no Amazonas. No entanto, como revelou a Agência Pública na última semana, as crianças indígenas seguem sofrendo de desnutrição e com a falta de acesso a serviços de saúde. A dramaticidade da situação piora com a sinalização de que o Ministério da Defesa deixará a operação, enquanto o garimpo ilegal segue ameaçando o território. As Forças Armadas chegaram a desmontar um posto de apoio que fornecia combustíveis a aeronaves do Ibama e da Polícia Federal. O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) solicitou, em novembro do ano passado, ajuda das Forças Armadas para a logística de distribuição de cestas básicas na TI, enfatizando a necessidade desse apoio.
Na última terça (9), o presidente Lula convocou uma nova reunião interministerial para discutir a situação da TI e afirmou que não aceitará “perder a guerra para o garimpo ilegal”. A Defesa finge que não é com ela, e chegou a alegar necessidade de estar de prontidão para o caso de uma guerra entre a Venezuela e a Guiana, o que seria cômico se não fosse trágico.
São as mesmas instituições que sempre apoiaram o garimpo em terras indígenas – e que tiveram mais do que um dedo na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023. Em tempo: na última quinta (11), Lula oficializou a troca no Ministério da Justiça. Flávio Dino deixa a pasta, rumo ao Supremo, sem enviar nenhuma portaria para demarcação de terras indígenas, como mostrou a Folha. A conta chegará para Lewandowski, que assumirá a Justiça a partir de fevereiro e terá que lidar com a ofensiva do Congresso para inviabilizar novas demarcações.
FISCAIS AMBIENTAIS CONTINUAM EM GREVE
Nos primeiros dias de janeiro, servidores do Ibama começaram uma greve para reivindicar reajuste salarial e reestruturação de carreira. No dia 4, trabalhadores do ICMBio aderiram ao protesto. O estopim foi a paralisação, há três meses, das negociações com o governo federal sobre as reivindicações. São mais de 2.000 grevistas. Atividades como as operações contra o desmatamento da Amazônia estão sendo afetadas, e o impacto só não é maior porque estamos em plena estação chuvosa na Amazônia e no Cerrado. O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima diz que está conversando com o Ministério da Gestão para resolver o problema.
DOADORES REJEITAM USO DO FUNDO AMAZÔNIA NA BR-319
No final do ano passado, a Câmara dos Deputados aprovou um Projeto de Lei surreal decretando a BR-319 uma rodovia de interesse nacional, a fim de forçar a pavimentação da estrada, que abrirá a porção mais preservada da Amazônia à especulação fundiária e ao saque. E fizeram mais: o PL prevê que o asfaltamento possa usar dinheiro do Fundo Amazônia, o que seria mais ou menos como usar verba da Saúde para subsidiar a indústria do tabaco. Nesta semana, doadores do fundo mandaram suas excelências descerem do salto: segundo o Climate Home, os EUA e a Alemanha já mandaram avisar que (oh surpresa) o uso contraria as regras do fundo.
NA PLAYLIST
Ñaumu, de Marlui Miranda e Gilberto Gil, versão de uma canção tradicional yanomami, cantada na língua.