Obra de arte nas imediações do campus da ONU em Bonn, Alemanha (Foto: Claudio Angelo/OC)

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Na newsletter: cavalos, ovelhas negras e a cabeça de bacalhau do financiamento climático

Edição traz primeira semana das negociações em Bonn, queimadas no Pantanal e situação do Canadá 1 ano após incêndios recordes

11.06.2024 - Atualizado 18.06.2024 às 13:11 |

A newsletter atrasou esta semana; culpa nossa. Mas o motivo foi justo: a manhã de sábado era tarde em Bonn, Alemanha, quando negociadores de 196 países se reuniriam para discutir o grande tema deste ano no combate à crise do clima, a nova meta de financiamento. Ela terá de ser adotada no fim do ano na COP29, no Azerbaijão, e o sábado foi dia de trabalho intenso em Bonn para avançar na definição da meta. Mas é mais fácil um trem sair no horário na Alemanha do que achar consenso no assunto, como você lerá abaixo.

A news de hoje traz o compilado habitual de desgraças climáticas, mas duas boas notícias (sim, temos!): a eleição de uma cientista do clima para a presidência do México (a ver em seu mandato quem falará mais alto, a ciência ou a renda do petróleo) e um adiamento, após pressão popular, da surreal “PEC das praias”, uma proposta de emenda à Constituição que permitiria privatizar e fechar trechos do litoral brasileiro.

Boa leitura.

META DE FINANÇAS VIRA BESTIÁRIO EM CONFERÊNCIA DO CLIMA DE BONN

Negociadores falam em cavalos, ovelhas negras do Caribe e árvores de Natal, mas não conseguem acordo na 1ª semana

A primeira semana de discussões sobre a nova meta global de financiamento climático terminou na tarde deste sábado em Bonn, Alemanha, com dois consensos: primeiro, os negociadores precisam de uma sala maior para se reunir. Segundo, o documento-base de negociação precisa ficar menor do que suas atuais 45 páginas.

“Não conseguimos nem imprimir, porque com esse tamanho as regras da ONU não permitem”, queixou-se o diplomata chinês Feng Chao, arrancando risos dos colegas.

Sem nenhum acordo na substância, restou aos negociadores apelar para as alegorias. A chamada NCQG, sigla em inglês para Nova Meta Quantificada Global, já foi chamada de “cavalo” (temos o estábulo, a sela e os estribos, mas o que interessa mesmo, que é a quantidade de dinheiro na mesa ninguém viu ainda), e de “árvore de Natal”, que tem todos os enfeites mas precisa de tronco e galhos. Neste sábado, um delegado de Barbados expressou sua frustração dizendo que, “se a gente não tem cavalo, então monta na vaca”. O co-presidente do grupo de trabalho que negocia a meta, o emiradense Zahir Fakir, falou que presentearia o colega com uma ovelha de barriga preta, uma raça caribenha apreciada pela sua carne.

Só que a tal ovelha, se baliu, não foi em Bonn. O texto de negociação foi reduzido de 63 para 45 páginas por Fakir e sua colega australiana Fiona Gilbert, mas nenhum dos países ficou satisfeito com o resultado. Ele ainda é um compilado de tudo o que todo mundo entende que seja a meta de financiamento, o principal resultado esperado da COP29, a conferência do clima de Baku, marcada para novembro. Isso significa que as visões mutuamente excludentes de países ricos e pobres estão no documento.

Os ricos não querem nem ouvir falar em responsabilidade, obrigação e dinheiro público – os EUA sugeriram que se deletasse do texto os parágrafos que fazem referência ao apoio insuficiente do mundo desenvolvido e ao espaço fiscal dos países pobres, entre outras coisas. Já o mundo em desenvolvimento se recusa a falar em financiamento privado e no eventual aumento da base de doadores (a China pediu que isso fosse excluído).

Em meio à pasmaceira, porém, números começaram a aparecer sobre o tal “quantum”, o total de recursos que teriam de ser pagos pelos países ricos a partir de 2026 para substituir a (pífia) meta de US$ 100 bilhões por ano prometida e jamais entregue no período 2020-2025.

A África do Sul trouxe para a mesa o número de US$ 1,3 trilhão anual, que dialoga com a cifra de US$ 6 trilhões até 2030 identificada pela própria Convenção do Clima como o custo de parte dos planos climáticos dos países em desenvolvimento. A Arábia Saudita lembrou que na pandemia e nos conflitos armados os países desenvolvidos mobilizam cifras dessa escala facilmente.

Neste sábado, o site Climate Home publicou detalhes de um documento do G77, o bloco dos países em desenvolvimento, propondo taxações da indústria de defesa e das big techs dos ricos para bancar a transição climática.

É improvável que uma proposta de “quantum” emerja em Bonn. Isso possivelmente será objeto de consultas entre chefes de Estado depois que a conferência acabar e antes da COP29, em Baku, quando a NCQG deve ser sacramentada.

Um diplomata do G77, o bloco dos países em desenvolvimento, disse que a presidência do Azerbaijão está começando a botar pressão para que a conversa avance e para fechar a negociação da NCQG já nos primeiros dias de COP – será a medida do sucesso ou fracasso da conferência. Se os azeris conseguirem montar essa árvore de Natal, merecerão um churrasco de ovelha negra.

Quem poderia imaginar?

ESTUDO COMPROVA IMPACTO DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS EM ENCHENTES NO RS

Um estudo publicado na segunda-feira (3) pela Rede Mundial de Atribuição (WWA, na sigla em inglês) concluiu que as fortes chuvas que inundaram o Rio Grande do Sul neste ano se tornaram pelo menos duas vezes mais prováveis e entre 6% e 9% mais intensas por causa das mudanças climáticas. A pesquisa também apontou que houve influência do fenômeno natural El Niño e que as consequências da tragédia foram piores devido a desigualdade social, a falta de infraestrutura adaptada e a um sistema de alertas ineficiente. Mais aqui.

Novo normal

FOCOS DE QUEIMADAS AUMENTARAM MAIS DE 900% NO PANTANAL

O Pantanal registrou 978 focos de incêndio de janeiro a 4 de junho, número 974% maior do que o registrado no mesmo período em 2023, quando houve 91 queimadas. O montante coloca 2024 como o segundo pior ano para o bioma nos últimos 15 anos. A liderança ainda é de 2020, quando 30% do Pantanal foi queimado. Poucas chuvas e as altas temperaturas são alguns dos fatores que têm contribuído para a dispersão do fogo. O pior é que a seca deve continuar nos próximos meses. Na quarta-feira (5), Dia Mundial do Meio Ambiente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Pacto pela Prevenção e Controle de Incêndios com governos estaduais para a implementação de ações colaborativas e integradas para prevenção, proteção e combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia.

Novo normal 2

FOGO “ZUMBI” PREOCUPA CANADÁ 1 ANO APÓS TRAGÉDIA

Há um ano, em 7 de junho de 2023, a fumaça dos incêndios florestais do Canadá invadia Nova York, nos Estados Unidos. O fumaceiro marcava a pior temporada de incêndios florestais da história canadense. Aproximadamente 17,3 milhões de hectares foram queimados pelo fogo intensificado por temperaturas mais altas e tempo seco. Até o momento, 2024 parece que não vai alcançar o recorde de 2023, mas isso não significa que o Canadá esteja em uma boa situação. O país teve o inverno mais quente desde que os registros começaram, em 1948, com 5,2°C acima do normal. O calor deu força aos fogos zumbis, incêndios que continuam no subsolo durante o inverno. A seca e as temperaturas anormais prevaleceram em parte do país e alguns zumbis ressuscitaram, especialmente no oeste. Análises apontam que o verão também pode ter temperaturas acima da média normal, mas o aumento das chuvas ainda é incerto. Mais aqui.

Agridoce

PL DA ADAPTAÇÃO PASSA NA CÂMARA, MAS EXCLUI RAÇA E GÊNERO

Após passar pelo Senado em maio, o Projeto de Lei (PL) 4.129/2021 voltou para a Câmara dos Deputados e foi aprovado na última terça-feira (4). A oposição, porém, conseguiu retirar do texto o trecho que garantia abordagens sobre raça e gênero nos planos de adaptação diante da crise climática. “Agora cabe ao Ministério do Meio Ambiente reforçar e se responsabilizar em garantir raça e gênero, não só transversal, não só como tema, mas como garantia de direitos no Plano Clima Adaptação”, comentou Mariana Belmont, assessora de clima e racismo ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra. Mais aqui.

Nós vamos invadir sua PEC

PRESSÃO DA SOCIEDADE FREIA PRIVATIZAÇÃO DE PRAIA

Depois de alerta de surfistas, agitação nas redes, público recorde em transmissão online de audiência no Senado, discussão entre Luana Piovani e Neymar e muitas manchetes de jornais (inclusive na mídia internacional), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, afirmou que a Proposta de Emenda à Constituição 2/2022, a “PEC das praias”, não será votada imediatamente. O respiro diante do avanço implacável do Pacote da Destruição no legislativo, no entanto, ainda não é uma vitória definitiva. A sociedade chamou atenção aos riscos e ameaças representados pelo projeto da “Cancún brasileira”, sonho antigo da família Bolsonaro, mas a proposta ainda não foi derrotada.

Como explicou O Eco, a PEC pretende transferir os chamados terrenos de marinha, que são parte dos terrenos da União no litoral do país, para estados, municípios e ocupantes privados, sejam pessoas ou empresas. Mesmo os “ocupantes não inscritos” (ou seja, sem registro legal) podem adquirir as áreas. Além do incentivo à grilagem e ocupação desordenada, a privatização dos terrenos pode ameaçar a circulação e livre acesso às praias. Além disso, significa a perda de gestão sobre áreas de mangue, restinga, dunas e outras, indispensáveis para a adaptação às mudanças climáticas. Seguimos de olho.

Ainda pior

“GELEIRA DO FIM DO MUNDO” É MAIS FRÁGIL DO QUE SE SABIA

O mais recente alerta da ciência sobre a gravidade da crise do clima e suas consequências para a humanidade vêm da gigantesca geleira Thwaites, a maior da Antártida Ocidental. Um grupo de cientistas descobriu que a formação é mais vulnerável do que se sabia ao derretimento causado pelo aquecimento do oceano. Dados de satélite mostraram que a água do mar circula por quilômetros abaixo da “geleira do fim do mundo”, como é conhecida justamente pelo potencial catastrófico de seu colapso – que pode inundar muitas cidades costeiras em todo o mundo. Segundo os pesquisadores, esse amplo fluxo das águas do Oceano Austral abaixo do gelo induzirá um “derretimento vigoroso” com o aquecimento da água marinha, agravando as projeções de aumento do nível do mar. Mais aqui.

A ciência ou o petróleo?

CIENTISTA DO IPCC É ELEITA PRESIDENTE DO MÉXICO

Ex-pesquisadora do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, a física Claudia Sheinbaum será a primeira mulher a ocupar a presidência do México, a segunda maior economia da América Latina. Sheinbaum foi apoiada pelo atual presidente Andrés Manuel López Obrador, o AMLO, um político que defende com unhas e dentes a exploração de petróleo. Fica a dúvida sobre se Claudia seguirá o caminho de AMLO apoiando a exploração de combustíveis fósseis ou se trabalhará para que o México faça uma transição energética justa e efetiva. O título de cientista e os oito anos no IPCC não são uma garantia. Especialistas comentam que a eleita manteve uma agenda climática fraca quando foi prefeita da Cidade do México entre 2018 e 2023. Uma análise do site Carbon Brief mostra que o plano de governo apresentado por Claudia durante a campanha eleitoral contém o objetivo “descarbonizar a matriz energética o mais rápido possível”. O mesmo documento, no entanto, diz que a nova administração estaria em linha com a política energética de Obrador. Sheinbaum assume o cargo no fim do ano.

Boiada no Matopiba

CERRADO ULTRAPASSA AMAZÔNIA E É NOVO LÍDER NO DESMATE

Pela primeira vez desde 2019, o Cerrado ultrapassou a Amazônia em área desmatada no Brasil. Os dados são do Mapbiomas, que lançou na última semana de maio o Relatório Anual do Desmatamento no Brasil (RAD 2023). Os dados revelaram mudanças de rumo no perfil da derrubada no país. A boa notícia é que, pela primeira vez desde 2019, houve queda de 11,6% na área total desmatada no Brasil (foram 1.829.597 hectares de vegetação nativa foram suprimidos, contra 2.069.695 ha em 2022). A queda, no entanto, se concentra principalmente na Amazônia. No Cerrado a situação segue crítica, principalmente na região do Matopiba (os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). O “berço das águas” do país, como é conhecido o Cerrado, respondeu por 61% da área desmatada em todo o país (o percentual da Amazônia foi de 25%), com 1.110.326 hectares derrubados – um crescimento de 68% em relação a 2022. Quase todo o desmatamento do país (97%) teve a expansão agropecuária como vetor. Mais aqui.

Silveirice da semana

MINISTRO SE COMPLICA AO DEFENDER PETRÓLEO NA MARGEM EQUATORIAL

Depois causar mal-estar dizendo que a Guiana estaria “chupando de canudinho as riquezas do Brasil”, o delegado Alexandre Silveira (PSD-MG), ministro de Minas e Energia, tentou amenizar. E continuou errando. Ignorando todas as evidências de que o mundo está desabando por causa das mudanças climáticas, repete que o Brasil deve continuar ampliando sua exploração de petróleo. Na segunda-feira (3), declarou à CNN que, na verdade, quis dizer que o Brasil deve se espelhar na velocidade com que a Guiana iniciou a exploração na Margem Equatorial, uma área ambientalmente sensível. “O que eu quis dizer é que a Guiana avançou de maneira muito célere nesta região geológica, que divide com o Brasil. Isso demonstra de maneira inequívoca que a Guiana tem mérito em atrair tantos investimentos nesta áreas. Precisamos até nos espelhar na velocidade que teve a Guiana de atrair tantos investimentos”. Faltou combinar com o planeta.

NA PLAYLIST

Lógica Maneira”, recém-lançada parceria do cantor, compositor e ativista socioambiental Leal com Davi Kopenawa, escritor, ator, xamã e líder yanomami. A canção-manifesto nasceu a partir da visita de Leal a Mamirauá, na Amazônia, e denuncia a lógica predatória de exploração na região intercalando versos em português e em yanomami.

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