Ultradireita ameaça ação climática no berço do Acordo de Paris
Freio a renováveis e abandono da cooperação internacional preocupam ativistas na França; esquerda e centro tentam “cordão sanitário” após derrota inicial
DO OC – A poucos dias do segundo turno das eleições parlamentares da França, que acontece no próximo domingo (7/7), especialistas e ativistas climáticas ouvidas pelo Observatório do Clima apontam que uma vitória da extrema-direita significaria uma “interrupção brusca” na ação climática e na transição ecológica no país, com desdobramentos “catastróficos”. A primeira rodada de votação, no dia 30/6, confirmou o favoritismo da coalizão Reagrupamento Nacional (RN), da extremista Marine Le Pen, que obteve 33% dos votos, fortemente apoiada na hostilidade a imigrantes e movimentos sociais.
O cenário, no entanto, é indefinido: apenas 76 das 577 cadeiras do legislativo francês foram decididas no primeiro turno, e mais da metade delas ficou com a direita radical. Para formar maioria absoluta, são necessários 289 assentos – ainda não há clareza sobre se o RN será capaz de formá-la. Quando os resultados começaram a ser divulgados no último domingo, milhares de pessoas foram às ruas de Paris em protesto, dando o tom de uma última semana de campanha intensa e disputada.
A coalizão de esquerda Nova Frente Popular, segunda colocada com 28% dos votos, e o partido do atual presidente, Emmanuel Macron, que ficou em terceiro lugar com cerca de 20%, iniciam um movimento de unidade em torno às candidaturas com mais chances de derrotar o RN na próxima rodada.
No sistema político francês, são eleitos em primeiro turno os candidatos que obtiverem mais de 50% dos votos em seu distrito. Dos 76 eleitos no último domingo, 39 são da extrema-direita, 31 da esquerda e dois do partido de Macron, o Renascimento (os outros quatro são de partidos menores). Quando não há essa maioria, todos candidatos com ao menos 12,5% dos votos passam ao segundo turno, permitindo que a segunda rodada conte com três ou até quatro candidatos.
O alto comparecimento às eleições parlamentares deste ano – convocadas antecipadamente por Macron após derrota para a extrema-direita nas eleições do parlamento europeu – ajudou a conformar um cenário inédito, em que a maioria das cadeiras será disputada por três candidatos no segundo turno. Até o fechamento desta reportagem, mais de 220 candidatos já haviam se retirado da disputa, especialmente figuras da esquerda e centro que aderiram à formação de um “cordão sanitário” para barrar a ultradireita.
Desastre econômico, social e ecológico
“Ter no poder um partido de extrema-direita que, repetidamente, negou ou ignorou as mudanças climáticas seria catastrófico. Não apenas a curto prazo, mas resultaria em um futuro sombrio para a população francesa por muitos anos. Além de o Reagrupamento Nacional não planejar aumentar os investimentos para fortalecer uma transição ecológica justa, suas políticas poderiam ameaçar dezenas de milhares de empregos no setor de energia renovável. Isso seria um desastre social, econômico e ecológico”, avalia Fanny Petitbon, líder da equipe da 350.org na França.
A palavra “clima” nem sequer aparece nas propostas oficiais da extrema direita para as eleições legislativas, segundo levantamento da Climate Action Network (CAN)/França que comparou os programas registrados pelos três principais blocos da disputa. Segundo a análise, ao mesmo tempo em que ignora a crise climática, o programa avança em uma agenda antiambiental e de fortalecimento dos fósseis, os principais responsáveis pela crise do clima. Há medidas que limitam o desenvolvimento das energias renováveis, criando demanda para o uso de carvão e gás fóssil. Além disso, o RN propõe revogar a decisão que encerra a venda de veículos novos a gasolina ou diesel em 2035, sem apresentar soluções alternativas de mobilidade.
“Se a extrema-direita vencer, a ação climática e a transição ecológica da França sofrerão uma interrupção brusca. O RN quer prolongar a dependência da França de combustíveis fósseis, o que teria um efeito prejudicial no clima e no poder de compra das famílias: pretendem frear o desenvolvimento de veículos elétricos, interromper a renovação dos edifícios, deixando milhões de famílias expostas ao frio no inverno, e frear as energias renováveis, o que resultará no ressurgimento do carvão e do gás fóssil para produzir eletricidade”, aponta Gaïa Febvre, coordenadora de política internacional da CAN/França, que sinaliza ainda a contradição do programa com a agenda climática internacional: “Isso seria contrário com os compromissos assumidos na COP28, quando os Estados se comprometeram a realizar a transição dos combustíveis fósseis. A extrema-direita vive no passado e está disposta a sacrificar as gerações futuras e presentes”, diz.
O veto às renováveis também é destacado pela editora de meio ambiente da rede France 24, Valérie Dekimpe, que sinaliza a proposta do RN para suspender os subsídios e cancelar projetos de energia eólica. Outro ponto sensível é o enfraquecimento da legislação sobre a eficiência energética das resisdências que, entre outros itens, torna ilegal alugar apartamentos com estruturas de energia antigas que impliquem alto consumo e gastos para as famílias.
“O RN quer abolir todas as proibições e obrigações em relação ao desempenho energético dos edifícios, o que condenaria muitas famílias a viver em casas com isolamento térmico de má qualidade e a pagar contas de aquecimento enormes”, completa Fanny Petitbon, que destaca ainda a ausência de comprometimento com a meta de alcançar a neutralidade de emissões de carbono até 2050, apesar de todas as recomendações feitas pela ciência.
Mas, apesar dos profundos impactos na vida, no bolso e no futuro da sociedade francesa, a crise climática e a agenda ambiental tiveram pouco ou nenhum espaço no debate público sobre as eleições. “Mesmo que 80% dos franceses considerem que o país deve fortalecer seus compromissos para enfrentar as mudanças climáticas, a campanha intensa de três semanas para as eleições parlamentares antecipadas não se concentrou em questões substantivas, como a ação climática e a proteção do meio ambiente, mas sim em táticas políticas e ataques pessoais. Os programas das três principais coalizões políticas para esta eleição (esquerda, centro e extrema-direita) estão completamente em desacordo no que diz respeito ao nível de ambição em relação à ação climática. É interessante notar que, pelo menos, a Nova Frente Popular sugere a criação de um imposto sobre a riqueza ‘com um componente climático’”, avalia a integrante da 350.org.
Segundo a análise da CAN/França, o programa da Nova Frente Popular, além de propor uma linha climática para o imposto sobre fortunas, “trata da maioria dos mecanismos a serem ativados para uma transição ecológica e justa, e isso em todas as escalas (local, nacional, europeia e internacional)”.
Já o programa da coalizão de Macron, segundo a CAN, “aborda o clima e a transição justa de maneira fragmentada, com algumas medidas pontuais, mas sem uma visão global e deixando muitas áreas de ação totalmente vazias”. Um exemplo são as propostas para o setor de transporte, maior responsável pelas emissões de gases-estufa pela França, que prevêem a disponibilização de 100 mil veículos elétricos no sistema de aluguel social, a baixo custo, mas não aborda a fabricação de pequenos veículos elétricos acessíveis, nem outras soluções de mobilidade como os transportes públicos ou o trem.
A ascensão da extrema-direita levanta, ainda, preocupações quanto à liberdade política e científica, o aprofundamento da violência policial e das perseguições a ativistas e pesquisadores, a exemplo do que ocorreu no Brasil sob Bolsonaro. “A França, infelizmente, se destaca como um dos piores países da Europa em termos de repressão policial contra suas populações marginalizadas e, agora, também contra defensores do meio ambiente. O aumento desses ataques demonstra que a hostilidade da extrema-direita contra o ativismo ambiental tem se infiltrado lentamente na sociedade francesa”, aponta Petitbon.
“Não podemos esperar nada além que isso piore se a extrema direita vencer neste domingo, com seu discurso que trata defensores do meio ambiente como ‘ecoterroristas’, em uma tentativa de desacreditar e deslegitimar nossas mobilizações para defender nosso planeta, nosso futuro e os direitos humanos, e responsabilizar aqueles que alimentam a emergência climática”, completa.
Caso obtenha a maioria absoluta do parlamento no próximo domingo, o RN já anunciou que indicará Jordan Bardella, 28, como primeiro-ministro. A presença da ultradireita no primeiro escalão poderia paralisar e inviabilizar o governo de Macron. Segundo a representante da CAN/França, é cedo para apontar como se dariam concretamente as relações entre governo e parlamento. “Teremos que esperar os resultados do segundo turno, que nos dirão se a extrema direita terá uma maioria absoluta ou relativa. Em seguida, teremos que analisar as alianças que serão formadas. Mas, de qualquer forma, tal presença da extrema-direita no parlamento é uma ameaça à emergência climática em que nos encontramos”, afirma Gaïa Febvre. (LEILA SALIM)