Clima quente prejudica esqui e ameaça derreter identidade nacional da Noruega
CLAUDIO ANGELO
DO OC, EM OSLO
OK, seria exagero dizer que não faz frio em Oslo em fevereiro. Mas temperaturas oscilando entre os dois graus negativos e os quatro graus positivos no centro da cidade no mês mais frio do ano dificilmente são motivo de pânico para quem se aventura pela gélida Escandinávia no inverno. A menos, claro, que você seja um norueguês que goste de esquiar.
O problema é que todos os noruegueses gostam de esquiar. E a mudança climática, causada ironicamente pelo petróleo que movimenta a economia norueguesa, está tornando isso cada vez mais difícil.
“Nós temos um caso de amor com a neve”, diz o diretor do Museu do Esqui, Erik Eide. “Costumamos dizer que os noruegueses nascem com esquis nos pés.” A própria palavra “ski” é de origem norueguesa. O esporte integra tanto a identidade nacional da Noruega que ganhou um museu inteiramente dedicado a ele, com artefatos que datam desde a era viking até as Olimpíadas de inverno atuais. Ao lado do museu, a 425 metros de altitude, em meio a montanhas que cercam a capital norueguesa, está outro orgulho do país escandinavo: a torre de saltos de Holmenkollen, onde os aspirantes a campeões olímpicos de uma modalidade vertiginosa de esqui deslizam a 100 quilômetros por hora para saltar 130 metros sobre o vazio e aterrissar na neve, de preferência em um único pedaço.
A obsessão data da pré-história. Os primeiros artefatos similares a esquis foram identificados em arte rupestre datada de 4.000 anos atrás. Em 1206, durante as guerras civis norueguesas, dois esquiadores de um grupo político rebelde resgataram o príncipe Haakon, com dois anos de idade, da morte certa nas mãos de um outro aspirante ao trono. A independência da Noruega, separada da Suécia em 1905, foi galvanizada por um esquiador e explorador polar, Fridtjof Nansen, que em 1909 emprestou seu navio, o Fram, para que outro esquiador, Roald Amundsen, obtivesse dois anos mais tarde o maior feito internacional do jovem país até então: a conquista do polo Sul. “Precisávamos de algo que nos identificasse como nação e que os suecos e os dinamarqueses não tivessem, e o esqui foi esse identificador”, diz Brigitta, uma das guias do museu.
Os noruegueses levam a paixão por deslizar na neve tão a sério quanto os brasileiros levam o futebol: seus carros têm raques especiais para esquis, seus aeroportos têm carrinhos de bagagem especiais para esquis, há trilhas de esqui cross-country espalhadas em volta da capital e lojas especializadas em todo canto. Quando neva o bastante, anda-se de esqui na cidade.
“Não há nada que deixe um norueguês mais feliz que acordar com 30 centímetros de neve acumulados no chão”, continua Eide.
Os tais 30 centímetros, porém, andam virando artigo de luxo. Nas últimas décadas, a Noruega esquentou acima do normal, com a temperatura em 2014 batendo o recorde de 2,2oC acima da média do último século. Neva cada vez menos nas zonas mais baixas, o que, segundo o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), dificulta o acesso de mulheres e da parcela mais pobre da população ao esporte – o que quer que “pobre” signifique no país de maior IDH do planeta.
“O inverno costumava durar do fim de novembro até o meio de abril”, diz outra funcionária do museu. “Costumávamos ter em média 5 graus negativos no inverno, agora está mais quente. É impressionante o que está acontecendo”, continua, reclamando de que Oslo tem visto alguns verões com temperaturas de até 30oC.
Segundo a Agência Ambiental Europeia, o número de dias com neve adequada para a prática do esqui cross-country na Nordmarka, região nos arredores de Oslo, caiu pela metade. Outro estudo, de 2009, mostra que não há uma tendência significativa de aumento ou redução de neve no país entre 1914 e 2008 – no entanto, as estações em zonas baixas perderam neve, enquanto nas regiões mais altas houve um aumento. Isso reflete um padrão esperado de mudança climática de aumento de precipitação de neve em zonas mais frias, já que há mais vapor d’água na atmosfera.
Para o fim do século, a previsão do Ministério do Meio Ambiente norueguês é que a temporada de esqui fique de dois a três meses mais curta nas zonas baixas, que incluem a capital. Um problema menor para o turismo no país, que recebe menos estrangeiros que destinos tradicionais de neve como Áustria e Suíça (e, vamos falar sério, quem aguenta fazer turismo num lugar onde uma água mineral custa 6 euros?). Mas um transtorno sério para a identidade de um povo que nasce “com esquis nos pés” e agora se vê obrigado a descalçá-los. A guia do Museu do Esqui lamenta a própria sorte e ameaça: vai passar o próximo fevereiro no Brasil. “Quem sabe lá tem neve.”
O jornalista viajou a Oslo a convite do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas)