Agromitômetro: verdades e mentiras sobre a “indústria da multa ambiental”
Saiba por que as afirmações do governo eleito sobre o tema são “fake news”
DO OC – Ao longo de toda a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro (PSL) fez duras críticas ao que chamou de “indústria da multa” ambientais e prometeu acabar com ela, como parte de seu plano de governo de “tirar o Estado do cangote de quem produz”.
Esse mantra vem sendo repetido pelo agora presidente eleito e por sua equipe. Numa transmissão ao vivo na semana passada, Bolsonaro disse que “me parece, não tenho certeza ainda, [que] aproximadamente 40% do dinheiro das multas aplicadas aos produtores rurais vai para ONGs”. O futuro chefe da Casa Civil, Ônyx Lorenzoni (DEM-RS), disse que dias depois que não apenas as ONGs levam 40% do dinheiro das multas como trata-se de uma soma astronômica: R$ 14 bilhões. Um dia depois, a futura ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MS) contou o mesmo conto e aumentou um ponto: disse que são R$ 15,3 bilhões “em multas ao setor agropecuário”, e que 40% da bolada fica com ONGs.
O OC fez o que os assessores técnicos do governo eleito deveriam ter feito antes de deixar os ministros comentarem o assunto: checou as informações com os órgãos ambientais do governo. Saiba o que é mito e o que é fato nessas afirmações.
“Existe uma indústria da multa no país.”
MENTIRA – O Ibama aplica em média R$ 3 bilhões em multas anualmente. Esse valor é basicamente o mesmo há uma década. Só que apenas 5% desse montante é efetivamente pago. Isso porque o infrator pode recorrer da multa no próprio Ibama. É o chamado recurso administrativo. Depois, se tiver bons advogados, pode protelar indefinidamente o pagamento recorrendo na Justiça. Lembre-se de que o Brasil tem quatro instâncias judiciais (pelo menos enquanto não mandarem um cabo e um soldado fechar o STF). A maior infratora ambiental do país, a Petrobras, pagou entre 2000 e 2011 apenas uma multa das 93 que tomou por vazamento de óleo. O presidente eleito, multado em R$ 10 mil em 2012 por pesca ilegal em unidade de conservação, até hoje não pagou a sua.
O Ibama tem hoje cerca de 100 mil processos de autos de infração acumulados em diversas instâncias de recurso. “A regra é o não pagamento”, diz a presidente do órgão, Suely Araújo.
Do pouco que se arrecada, os órgãos ambientais federais não ficam com um centavo. Pela lei, 20% do valor é destinado ao Fundo Nacional do Meio Ambiente, gerenciado pelo Ministério do Meio Ambiente, que existe desde 2000 e banca projetos ambientais em diversas áreas e regiões do país. A maior parte, 80%, vai para o Tesouro Nacional.
“Existem R$ 14 bilhões em multas ao agronegócio.”
MENTIRA – Impossível saber de onde Bolsonaro e seus ministros tiraram esse bat-número, mas dá para fazer uma conta de padaria. O passivo hoje no Ibama, ou seja, as multas não pagas, chega a R$ 38 bilhões. Em 2017, o governo tentou reduzir esse montante e baixou um decreto presidencial (9.179/2017) estabelecendo que infratores poderiam ter desconto de 60% nas multas caso usassem o valor restante (40%) para bancar serviços de recuperação ambiental. É um programa voluntário: entra quem quer. A conversão de multas está prevista desde 1998 na Lei de Crimes Ambientais, mas sua aplicação teve uma série de problemas, até que o Ibama decidiu suspendê-la em 2012. Esses problemas foram corrigidos pelo novo decreto, que ganhou apoio dos maiores encrencados ambientais do Brasil – inclusive a Petrobras.
O que os ministros Ônyx e Tereza Cristina provavelmente fizeram foi imaginar que todos os R$ 38 bilhões do passivo do Ibama seriam passíveis de conversão. Aplicando o desconto de 60%, ficaríamos com R$ 15,2 bilhões, que é mais ou menos o número citado pela futura titular da Agricultura.
Ocorre que é impossível converter todo o passivo, porque, entre outras coisas, a adesão à conversão é voluntária. Alguns infratores podem achar melhor recorrer eternamente de suas multas. Depois, o agronegócio está longe de ser o maior devedor do Ibama. A Petrobras e indústrias poluentes, como as da mineração, lideram esse ranking. Então é falso que haja R$ 14 bilhões (ou R$ 15 bilhões) em multas esperando para serem entregues a alguém.
“Há agora R$ 1 bilhão que vai ser destinado a algumas ONGs brasileiras e internacionais.”
NÃO É BEM ASSIM – A cifra mencionada por Ônyx Lorenzoni está correta. O Ibama está organizando uma série de chamamentos públicos para aplicar o dinheiro das empresas e órgãos que aderiram à conversão. O primeiro chamamento, que está em fase de aprovação, converterá em serviços R$ 2,6 bilhões. Com o desconto de 60%, sobra cerca de R$ 1 bilhão a aplicar. Esse dinheiro será usado em ações de recuperação ambiental na bacia do São Francisco, sobretudo em Minas Gerais, e de convivência com o semiárido na bacia do Parnaíba, no Piauí.
Mas o ministro distorce a questão das ONGs Qualquer entidade pública, privada ou da sociedade civil, pode em tese executar os projetos. No primeiro chamamento, foram habilitadas somente entidades sem fins lucrativos, por uma razão prosaica: órgãos públicos estão amarrados pelo teto de gastos – que Jair Bolsonaro apoia enfaticamente – então não podem gastar mais do que o limite do orçamento do ano anterior corrigido pela inflação. O Ibama, por exemplo, jamais poderia executar a conversão, porque esse R$ 1 bilhão é três vezes mais do que o orçamento do órgão.
A questão das “ONGs estrangeiras” é falsa. Somente entidades brasileiras podem executar o recurso. E muitas nem são ONG ambientais: entre as 44 entidades habilitadas no primeiro chamamento, há associações de produtores rurais, cooperativas agrícolas, associações de municípios, fundações, como a Fundação Banco do Brasil e ONGs ambientalistas brasileiras – em sua maior parte, regionais.
“Há dinheiro público de multas ao agronegócio indo para ONGs.”
MENTIRA– O dinheiro das multas é privado. O governo apenas diz onde ele será usado e fiscaliza a aplicação. É como se você tomasse uma multa de R$ 2.000 por dirigir após beber e pudesse pagar essa multa com desconto de 60% aplicando os 40% restantes, digamos, num fundo gerido pelo governo para bancar trabalhos sociais.
Como se trata de um decreto presidencial, assinado por seu antecessor, Michel Temer, o presidente Bolsonaro pode extinguir o programa de conversão com uma canetada. Mas, convenhamos, seria uma tremenda burrice, já que o programa é voluntário e não há um centavo de dinheiro público envolvido. Se acabar com o programa, o presidente eleito vai eliminar a possibilidade de desconto para grandes devedores que estavam contando com isso, vai impedir que o meio ambiente se beneficie das ações de recuperação – e vai precisar pagar na íntegra o papagaio de R$ 10 mil da própria multa, com juros e correção, depois que se esgotarem todos os recursos.