Amazônia sufocada e o racha na ciência do clima
Newsletter de 3 de novembro de 2023
Enquanto a reação atroz de Israel ao ataque atroz do Hamas lança sombra sobre os resultados da COP28, a conferência do clima que começa em menos de um mês em Dubai, os efeitos do aquecimento global seguem em overdrive neste ano do juízo de 2023. A Amazônia, que já vinha sofrendo uma das piores secas dos últimos 120 anos, recebeu mais um golpe no mês de outubro: queimadas e incêndios florestais sufocam Manaus, Santarém e centenas de cidades menores e povoados rurais. Mesmo com o desmatamento em queda, o número de focos de calor no mês passado foi o maior desde 2008. “Não tem água e não tem ar num lugar que teoricamente teria um ar muito puro e uma água muito limpa”, resume a bióloga Erika Berenguer, em depoimento a esta newsletter.
No ano que já é o mais quente desde o início das medições, a temperatura caminha para ficar quase 1,5ºC acima da média pré-industrial, dando à humanidade um gostinho do que significa perder a meta do Acordo de Paris. Cientistas debatem se estamos assistindo a uma aceleração da tendência de aquecimento, enquanto um dos pioneiros da comunicação pública da emergência climática, o americano James Hansen, joga a toalha e começa a falar de geoengenharia, uma solução teórica e de consequências imprevisíveis para o planeta.
Boa leitura.
“Parece que tem alguém fumando, mas é o meu cabelo”
A bióloga carioca Erika Berenguer, 40, pesquisa fogo na Amazônia na Universidade de Oxford. Ela está em trabalho de campo no Pará desde setembro e vem sentindo na pele e nos pulmões o cotidiano sufocante das populações rurais da região, assoladas pela pior temporada de queimadas em outubro desde 2008 e por uma das piores secas em 120 anos – cortesia da crise climática. Neste relato, ela conta como a floresta chegou a esse ponto e dá ideias de como mitigar o problema.
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“A Amazônia está neste ano passando por duas coisas que até pouco tempo atrás seriam inimagináveis: populações locais não terem água no lugar que tem a maior bacia hidrográfica do mundo e populações locais não conseguirem respirar por mais que elas estejam na maior floresta tropical do mundo. Não tem água e não tem ar num lugar que teoricamente teria um ar muito puro e uma água muito limpa.
Só que eu vejo que a imprensa focou muito em Manaus, porque é fácil de chegar, e você olha pra frente tem o rio seco e olha pra cima e tá tudo coberto de fumaça, então você cobre as duas pautas. Só que a fumaça que chega em Manaus e, sim, afeta a maior cidade da Amazônia, não se compara à fumaça que permeia a vida inteira das populações rurais. O fogo não está ocorrendo dentro da cidade, ele ocorre nas áreas rurais. E essas populações acordam, dormem, trabalham, jogam bola, bebem no bar com toda essa fumaça. E isso tem sido a minha realidade.
Eu acordo toda noite achando que tem alguém dentro do quarto fumando um cigarro. E sinto um cheiro e acordo exaltada, nervosa, e percebo que o cheiro vem dos meus cabelos. E eu fico sem ar, começa a vir a tosse, o pigarro. A tosse é uma companheira do meu pulmão no último mês. As fungadas, o muco, as dores, a falta de apetite. É o que está todo mundo sentindo. E não estou vendo ninguém olhando para as populações rurais, para o que elas estão passando.
O governo está numa situação difícil, porque pegou as agências totalmente desestruturadas num ano de emergência climática. E a gente tem neste ano uma combinação de três coisas que eu chamo de “combo da morte”: tem as mudanças climáticas, que em alguns lugares já fazem com que a estação seca seja 2oC mais quente e chova um terço a menos – tudo isso deixa a floresta mais inflamável. Além disso, temos uma seca extrema ocorrendo, que é o El Niño, e não sabíamos como ele iria interagir com o aquecimento das águas do Atlântico. E tivemos antes três anos de La Niña, o que significou que muita área que foi desmatada nos últimos três anos não deu pra ser queimada. Então este ano muita área que não foi queimada nos últimos três anos está sendo agora. Esse fogo pode escapar para dentro da floresta, gerando incêndios florestais. O governo já sabia disso tudo. A gente já sabe que vai ter um El Niño há seis meses. E a gente tinha os dados do Ipam das áreas derrubadas e não queimadas. Então tinha todos os alertas da ciência. O que eu acho que aconteceu foi que, quando não começou a pegar fogo em agosto, em vez de dirigir recursos para ações preventivas, a galera segurou.
Eu quero apresentar soluções para o fogo, não aguento mais falar que o problema é o fogo e nada acontecer. Uma solução possível seria uma bolsa-defeso, a primeira bolsa-fogo do Brasil. O fogo na Amazônia está profundamente ligado à segurança alimentar das populações mais vulneráveis. Elas dependem do roçado, da agricultura de corte e queima. A gente não pode proibir essas pessoas de ter a sua farinha, então não dá pra proibir o fogo. Mas daria para dar essa bolsa em anos de seca extrema, e a gente sabe quando eles ocorrerão. Para isso o cálculo é fácil: a gente estima quanto a pessoa iria plantar, faz uma projeção do preço da saca de mandioca e divide por 12 meses. Isso caberia como um fundo totalmente inovador, não faria as pessoas passarem fome e evitaria que esse fogo de roçado se transformasse em incêndio florestal.
A outra coisa é que o desmatamento tem um protagonismo muito grande. O Prodes tem coletiva para lançamento dos dados todo ano. O fogo não tem esse protagonismo. A gente confunde fogo de desatamento com fogo de pastagem com fogo de roçado e com incêndio florestal. É essencial que a gente traga aos incêndios florestais o protagonismo que eles precisam ter. A gente já tem na bacia amazônica, concentrados no Brasil, 120 mil quilômetros quadrados de florestas que já pegaram fogo. São florestas profundamente diferentes das que nunca queimaram. Trinta anos depois de um incêndio a floresta queimada armazena 25% menos carbono do que uma que nunca queimou. É importante trazer para os incêndios um protagonismo. A floresta amazônica era uma floresta que era úmida demais para queimar. E hoje em dia a gente tem megaincêndios na Amazônia, caracterizados pela queima de áreas maiores que 10 mil hectares. Em 2015 tivemos 1 milhão de hectares queimando só no baixo Tapajós. Para atacar esse problema de frente ele precisa ter nome, protagonismo e uma agenda associada. Então propomos que, do mesmo jeito como anunciamos a taxa de desmatamento, anunciemos também a área de floresta em pé queimada. O Inpe já computa isso, seria apenas uma estratégia de comunicação para trazer protagonismo para um problema tão grande.”
“Entramos em território inexplorado”, diz cientista
Mais abundantes que fumaça em Manaus são os trabalhos científicos vindo à tona neste segundo semestre de 2023 mostrando como a crise climática é muito pior do que se imaginava e pode estar acelerando. O artigo “O estado do clima em 2023: entrando em território inexplorado”, lista alguns dos recordes de extremos climáticos do ano para sentenciar que a humanidade já entrou em território climático inexplorado. O artigo foi assinado por pesquisadores de diversos países, incluindo o brasileiro Luiz Marques e Saleemul Huq, cientista de Bangladesh pioneiro no estudo das perdas e danos climáticos, que morreu no dia 28 de outubro. Já o relatório “Riscos de Desastres Interconectados 2023” produzido pelo Instituto de Meio Ambiente e Segurança Humana da Universidade das Nações Unidas (UNU) destaca seis pontos de inflexão com impactos para a Terra e a população: extinções aceleradas, derretimento das geleiras montanhosas, futuro não segurável, esgotamento da água subterrânea e contaminação espacial.
Pioneiro nos alertas sobre aquecimento defende geoengenharia
O climatologista americano James Hansen, que em 1988 foi o primeiro cientista a dizer que o aquecimento global já era uma realidade, liderou uma pesquisa sugerindo que a sensibilidade climática do planeta é maior do que se imaginava. Publicado na última quinta-feira (2), o artigo Global warming in the pipeline (“O aquecimento global contratado”, em tradução livre), mostrou que dobrar a quantidade de CO2 na atmosfera produziria um aquecimento de, no mínimo, 4,8ºC na comparação com o período pré-industrial. Os dados anteriores apontavam que esse aquecimento seria de 1,5 a 4,5°C. O Painel do Clima da ONU adota um aquecimento de 3ºC como dado mais confiável. Segundo Hansen e colegas, a descoberta significa que reduzir emissões rapidamente é essencial, mas não suficiente. Eles defendem a realização de pesquisas para desenvolvimento de ações temporárias de intervenção no balanço energético da Terra, capazes de minimizar o desequilíbrio causado pela alta concentração de gases de efeito estufa. É a famosa geoengenharia, temida porque ninguém sabe quais seriam seus efeitos colaterais.
Aceleração de aquecimento causa racha entre climatologistas
A sucessão sem precedentes de desastres climáticos em 2023 expôs uma polêmica que fermentava havia algum tempo na comunidade científica. Alguns pesquisadores do clima, como James Hansen (mais sobre ele acima), afirmam que o aquecimento global está em franca aceleração, o que significaria que o buraco entre as políticas atuais e o que é preciso fazer seria muito maior. Outros, como Michael Mann, da Universidade da Pensilvânia, dizem que ainda não há evidência de aceleração. A climatóloga Karina Lima, da UFRGS, relatou a briga aqui.
Adaptação tem déficit de recursos de até US$ 366 bi
O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente lançou na última quinta-feira (2) seu relatório anual Adaptation Gap Report. Segundo a publicação, o financiamento para adaptação à crise do clima é 50% menor do que se imaginava. Os custos modelados para adaptação eram estimados em US$ 215 bilhões por ano nesta década, mas o financiamento necessário aumentou para US$ 387 bilhões anuais até 2030. Na contramão, o fluxo de financiamento público internacional caiu de US$ 25,2 bilhões para US$ 21,3 bilhões em 2021. A diferença entre os valores necessários e o fluxo público internacional aponta um déficit entre US$ 194 bilhões e US$ 366 bilhões por ano. Isso indica que as necessidades para o financiamento de adaptação para países em desenvolvimento são entre 10 e 18 vezes maiores do que os fluxos públicos internacionais. Lembrando que a promessa que os países ricos fizeram de financiamento climático era de US$ 100 bilhões por ano, que ainda não foram pagos, e a adaptação tem menos da metade desse bolo.
Impasse de sempre implode conversa sobre fundo de perdas e danos no Egito
Como se restasse dúvida de que a criação de um fundo para perdas e danos será uma das maiores tretas da COP28, uma sessão de diálogo entre os países sobre o tema implodiu no fim de outubro no Egito. O chamado TC4 (4ª sessão do Comitê de Transição) reuniu 24 países para tentar arredondar a bola do fundo antes da conferência de Dubai, mas precisou ser suspenso por causa das brigas de sempre entre países ricos e pobres.
O principal desacordo foi sobre qual será a instituição anfitriã do fundo. Os países desenvolvidos, em especial os EUA, defendem que seja o Banco Mundial, que eles controlam. O que causa arrepios nos países em desenvolvimento, lembrando das dívidas externas contraídas junto ao banco. Além disso, o Bird é um grande investidor em combustíveis fósseis – e não dá para esperar que quem ganha com o problema seja parte da solução.
Mas a pancadaria não para aí. Os desenvolvidos estão rejeitando ser os maiores contribuintes para o fundo e querem “aumentar a base de doadores” (alguém ouviu “China”?). Também pressionam para limitar os países que podem receber dinheiro do fundo, excluindo nações emergentes. No clima de dedo no ** e gritaria que se instalou, acabou caindo do texto a menção a “direitos humanos” no fundo – e se perdas e danos não são O tema de direitos humanos a gente não entende mais nada.
Uma nova reunião, que não estava prevista, foi convocada para os dias 3 e 4 em Abu Dhabi. No momento em que fechamos esta newsletter, os países em desenvolvimento haviam cedido e topado o Banco Mundial como gestor “interino” do fundo.
País cumpre meta de 2025 se derrubar desmate à metade em 2 anos
Lançada na última terça-feira (31), uma nota técnica do OC mostrou que, para cumprir sua meta climática, o Brasil precisa reduzir em 46% as emissões de CO2 decorrentes do desmatamento na Amazônia. Isso significa limitar a derrubada a cerca de 6.000 km2 em 2025, diminuindo quase à metade a taxa de desmatamento no bioma, que atingiu 11.594 km2 em 2022. Parece ambicioso, e é, mas já foi feito no passado: entre 2004 e 2006, a taxa de desmatamento na Amazônia foi cortada quase à metade, e entre 2007 e 2009 também. Leia a nota técnica aqui.
Bife brasileiro emite mais carbono que o Japão
Um novo estudo do SEEG, o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do OC, mostrou que os sistemas alimentares responderam em 2021 por 73,7% (1,8 bilhão de toneladas) das 2,4 bilhões de toneladas brutas de gases de efeito estufa lançadas pelo país na atmosfera. O levantamento – que se debruçou sobre as emissões e remoções da produção, da distribuição e do consumo de comida no Brasil – confirmou que o desmatamento domina as emissões do sistema alimentar, respondendo por 56% do total do setor (1 bilhão de toneladas de CO2). Depois vêm a agropecuária (cujas emissões são geradas sobretudo pelo rebanho bovino), com 34% do setor, e a energia, com 6%. O recorte da carne bovina aponta que, se fosse um país, o bife brasileiro seria o sétimo maior emissor do planeta, despejando cerca de 1,4 bilhão de toneladas brutas na atmosfera. Mais aqui.[:]