Como será o mercado de carbono do Brasil, que foi adiado para 2017
País adiou para 2017 decisão sobre implementação de mecanismo doméstico de compra e venda de emissões, que tem entre seus desafios o desinteresse do setor privado, relata Rafael Garcia
RAFAEL GARCIA
ESPECIAL PARA O OC
Já existem no mundo 15 países que cobram impostos sobre a emissão de CO2, e em 17 diferentes regiões do planeta o carbono já é uma commodity, transacionada em mercados criados para ajudar o setor privado a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa. Para decepção de quem espera ver o Brasil entrar nessa onda, o governo ainda não deu sinais de como país pretende “precificar” o carbono aqui, quando vai fazê-lo e se vai. A indefinição porém, não tem impedido economistas de especularem como será esse futuro em que as emissões do país terão um custo mensurável em reais.
Justiça seja feita, o Ministério da Fazenda possui um núcleo de técnicos preocupados com o assunto e vai iniciar em outubro uma série de seminários para discutir o que fazer. A ideia é produzir análises e simulações para um relatório a ser publicado em 2017, documento que vai orientar decisões de governo. A definição sobre quais setores produtivos devem ficar submetidos a taxas ou sistemas de mercado deverá sair daí. Uma taxa de carbono pode ser aplicada de um ano para o outro, mas um mercado, dada a complexidade de implementação, dificilmente terá lugar no Brasil antes de 2020.
Mercados de carbono usam um princípio chamado de cap and trade (em inglês, “limite e comercialização”). Eles começam com um governo estabelecendo um limite máximo de emissões (o cap) e distribuindo direitos de poluição entre empresas e entidades que precisam fazê-lo, em setores como indústria, energia e transporte. Cada entidade pode então emitir o CO2 necessário à sua atividade ou negociar a venda de seus créditos de emissão para empresas e setores onde seja mais caro fazê-lo (o trade). O teto somado das emissões, porém, não se altera.
A ideia de permitir a troca de direitos de emissão é baratear o custo geral dos investimentos para mitigação, a redução do CO2 e de outros gases-estufa.
Suponhamos que a indústria de um país seja obrigada a abater 20% de suas emissões em um certo período. No início, então, uma empresa do setor siderúrgico receberia permissões para emitir apenas 80% do CO2 que vinha emitindo. Para isso, imaginemos que ela precise fazer um investimento de R$ 100 mil (comprando um forno mais eficiente, por exemplo).
Esse mesmo país também pode abrigar, por exemplo, uma indústria de papel e celulose com emissões do mesmo porte e a mesma meta de corte de 20% daquela empresa siderúrgica. Para chegar a essa meta, porém, bastaria a ela um investimento de R$ 20 mil, pois diferenças técnicas tornam a mitigação mais barata em seu setor. Se essa empresa quiser, ela pode reduzir 40% de suas emissões – duas vezes mais do que o seu cap – e vender os créditos relativos ao corte excedente para a empresa siderúrgica. Caso as duas empresas fechem o negócio a R$ 60 mil reais, por exemplo, ambas saem ganhando.
“O mercado viria justamente para reduzir os custos gerais de mitigação”, explica Luiza Maia de Castro, economista da consultoria ambiental Gitec e autora do exemplo acima. “Nesse caso, se governo obrigasse todo mundo a abater 20%, sem mercado, sairia mais caro.”
Forças de mercado
Numa simulação realizada pela pesquisadora para a Coppe (Coordenação de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da UFRJ), considerando uma meta de corte de 30% de emissões de para o Brasil de 2010 a 2030, o livre-mercado de carbono conseguiria derrubar de US$ 285 bilhões para US$ 62 bilhões o custo total de investimentos em mitigação na indústria em comparação a um cenário de metas sem mercado.
O trabalho, que não levou em conta emissões de transporte ou energia, identificou três setores industriais como grandes potenciais compradores de créditos de carbono (refino, indústria química e metais não-ferrosos), e três grandes setores vendedores (cerâmica, siderurgia e bebidas/alimentos).
Para chegar ao resultado acima, Castro construiu um cenário no qual o preço da tonelada de CO2 ficou em cerca de US$ 300. Mas não é essa faixa de valor que está se vendo nos mercados que já existem.
No Sistema de Comércio de Emissões da União Europeia, o primeiro a ser implantado no mundo, após o Protocolo de Kyoto, a tonelada de CO2 vinha sendo negociada a meros US$ 8 em abril deste ano. O mercado que atingiu o maior valor neste ano, o de Tóquio, negociava a tonelada de CO2 a US$ 38 no mesmo mês. Na última década, o carbono ganhou o apelido pouco edificante de “a pior commodity do mundo”.
Analistas estimam que o preço de equilíbrio na situação atual seria mesmo na faixa dos US$ 30, mas esse valor crescerá, claro, caso um acordo global do clima com metas relevantes obrigue a maior parte dos países a turbinar suas ações de mitigação. Não faz sentido implementar um mercado, afinal, se a oferta de créditos estiver sempre acima da demanda.
“O que está acontecendo nos mercados de carbono por enquanto é um balão de ensaio, não é para valer”, afirma o economista Sérgio Margulis, ex-secretário de Desenvolvimento Sustentável da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. “Uma tonelada do CO2 a US$ 8 não vai mudar nada. Para isso deveríamos estar falando de algo em torno de US$ 200.”
Desde o ano passado, o GVCES (Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas), em parceria com a Bolsa Verde do Rio de Janeiro, está rodando uma simulação de mercado de carbono feita com 20 empresas voluntárias do setor industrial e energético. A simulação deve acabar em agosto deste ano, mas no final do ano passado o programa soltou um relatório preliminar — com resultados não muito animadores.
Na simulação, as empresas recebiam créditos de carbono alocados por critério de comparação de desempenho de mercado, e uma meta global de mitigação de 10% em relação a 2013. A ideia era que empresas se antecipassem na aquisição de créditos de carbono para evitar ter de comprá-los mais caro às vésperas de o ano fiscal do cap-and-trade se encerrar. Mas apenas seis empresas estavam com as negociações em dia quando o primeiro relatório do projeto foi publicado. Um sinal do desinteresse é que a demanda por permissões de emissão não superou a oferta em nenhum dos leilões realizados, e o preço imaginário da tonelada de CO2 ficou em torno de US$ 13. É provável que várias empresas recebam penalizações virtuais no mês que vem.
O GVCES atribui o problema à falta de envolvimento dos departamentos financeiros das empresas na simulação. Na maioria delas, a política ambiental é encargo apenas de departamentos de sustentabilidade, que não têm tanta expertise em estratégias de mercado.
Mercado versus imposto
Se o mercado de emissões traz desafios para o Brasil, falar em tributação de carbono no país, então, é um verdadeiro tabu. Mas não é uma carta totalmente fora do baralho, pois pode ser uma forma mais simples de integrar o setor de transporte num sistema de precificação de carbono. Esse imposto poderia ser algo semelhante à Cide (Contribuição de Intervenção de Domínio Econômico), que incide sobre importação e venda de combustíveis. Nesse caso, porém, os biocombustíveis teriam de ter tratamento diferente dos combustíveis fósseis.
Quando um governo decide taxar diretamente o carbono em vez de criar um cap-and-trade, para definir valores, seria desejável levar em conta o custo social do aquecimento global induzido pelo aumento das emissões de CO2. Entram na conta o impacto financeiro do clima na produtividade agrícola, nos desastres naturais, na saúde pública etc. Mas o resultado da conta, por enquanto, depende de quem calcula.
Um estudo do governo americano, por exemplo, estipulou em US$ 38 o custo social da tonelada de gás carbônico, estabelecendo um ponto de referência para a eventual criação de uma taxa. Recentemente, um grupo de pesquisa da Universidade Stanford aprimorou o modelo usado para fazer esse cálculo. O novo trabalho levou em conta que a mudança climática também causa, entre vários problemas, recessão econômica — sobretudo em países pobres –, criando um círculo vicioso. A conclusão é que, levado isso em conta, o custo social real da tonelada de CO2 é de US$ 220.
Nenhuma tributação de carbono implementada no planeta hoje chega perto desse valor. A tonelada de carbono mais taxada do mundo, a da Suécia, está em US$ 130. Os outros países nórdicos também criaram tributação para CO2, e são aqueles onde o preço da tonelada é mais alto (e onde, curiosamente, emissões caíram nos últimos anos sem que o crescimento econômico fosse prejudicado). Fora da Escandinávia, o maior valor de uma taxa de carbono foi atingido na Irlanda, com US$ 22/tCO2.
Um imposto sobre carbono poderia ser criado, porém, para fins unicamente de arrecadação, como fez a Irlanda após passar por uma grave crise econômica. Mas nesses casos sua eficácia ambiental precisaria ser muito bem calculada. Se for muito barato, o imposto corre o risco de não ser útil para segurar as emissões (já que uma taxa de carbono não trabalha em princípio com um limite de emissão estabelecido). Em outras palavras, com um imposto muito abaixo do potencial de lucro obtido com a emissão de uma tonelada de CO2, o crime compensa e ninguém se intimida. Por oturo lado, se o imposto estiver muito alto, pode estrangular os setores produtivos tributados.
Muito desse equilíbrio depende também do destino que o governo dá ao dinheiro do imposto. O IES Brasil, um estudo sobre trajetórias de mitigação de emissões do Brasil liderado pela Coppe-UFRJ e cujos resultados serão publicados em breve, concluiu que, quando uma taxa sobre o carbono era aplicada sobre cenários econômicos de mitigação, o resultado era uma ligeira recessão, não importando se com alto ou baixo esforço de redução de emissões. Isso porque o dinheiro do imposto, na simulação, era usado para desonerar encargos trabalhistas em setores mais intensivos em mão-de-obra e evitar desemprego. Não se considerou “reciclar” o dinheiro da taxa para incentivar setores com maior potencial de mitigação e de renda, que poderiam equilibrar o jogo do PIB.
Com um número maior de países taxando gases-estufa, porém, não é improvável que no futuro alguns imponham barreiras à importação de produtos com alta pegada de carbono. Não adotar uma taxa, num cenário assim, poderia prejudicar até a balança comercial do país.
“Existem, por exemplo, produtos de países que não têm regra nenhuma que estão entrando no Brasil e competindo com a indústria brasileira”, afirma Shelley Carneiro, gerente-executivo de Meio Ambiente e Sustentabilidade da CNI (Confederação Nacional da Indústria). “Eles estão entrando no mercado brasileiro com produtos bem mais competitivos, e isso também precisa ser revisto.”
A CNI entregou ao Ministério das Relações Exteriores em 16 de junho um documento explicando o que a indústria espera do governo brasileiro na negociação do novo acordo do clima. “Devem ser integrados ao novo acordo mecanismos de mercado que criem condições economicamente atrativas para a participação da indústria, propiciando fontes de financiamento e acesso a tecnologias de baixa emissão”, afirma a carta, que pede também a busca de um consenso para facilitar a criação de mercados internacionais de carbono.
Segundo Carneiro, a indústria brasileira considera que já está fazendo voluntariamente aquilo que é possível fazer por enquanto para reduzir emissões.
“Ninguém consegue mudar nada sem ter os recursos apropriados”, afirma.
Florestas na conta?
Uma parte do quebra-cabeça da precificação do carbono no Brasil não tem a ver com o tipo de política a ser adotada. Não importa qual seja ela, ninguém ainda vê maneiras práticas de incluir nesse tipo de esquema o setor agropecuário, que hoje é o segundo maior produtor de gases estufa do país.
Apesar de o inventário nacional de emissões ser capaz de estimar taxas de emissão para o agronegócio como um todo, ainda não existe uma tecnologia prática capaz de calcular e monitorar o carbono emitido pelos 5 milhões de imóveis rurais no país. Esse grau de pulverização dos agentes tornaria proibitivamente alto o custo operacional de implementar um mercado –algo que já não é barato de fazer nem no setor industrial.
Optar pela tributação em vez de um sistema de cap-and-trade também seria uma opção no caso da agricultura, mas é algo que o governo não vê com muita simpatia. A percepção é que uma taxa de carbono para produtos agrícolas causaria uma elevação no preço dos alimentos e não necessariamente derrubaria as emissões do setor. A política pela qual a União tem mostrado mais simpatia é a de criar programas de incentivo, como o Plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono), com linhas de crédito para agroempresas que queiram investir em projetos para preservar carbono no solo e na biomassa. O argumento do setor agrário é que uma taxa de carbono provavelmente penalizaria mais os produtores em situação regular.
Mas existe uma maneira de conectar o combate ao desmatamento com um mercado de carbono. Essa proposta inclui as políticas de REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal) num mecanismo especial dos mercados de carbono. Para muita gente, isso é controverso.
O REDD+ é um mecanismo de compensação financeira para incentivar a preservação de árvores que de outra forma seriam derrubadas. A inclusão de um sistema abrangente de REDD+ no acordo global a ser negociado na cúpula de Paris está em aberto, mas alguns mercados de carbono já abrem a perspectiva de que empresas que fazem investimentos externos em projetos de combate a desmatamento possam abater emissões de suas metas individuais de redução.
O problema é que, ao menos no ETS da União Europeia, existe ainda uma certa desconfiança sobre as garantias oferecidas. Suponhamos que um empresa adquira uma um crédito de mil toneladas de carbono obtido pela criação de uma reserva particular na Amazônia. Ela vai querer emitir o carbono extra que “comprou”. Mas quem garante que essa floresta continuará preservada? Se uma década depois do repasse do dinheiro do REDD aquela floresta for desmatada, a atmosfera receberá tanto o carbono daquelas árvores quanto o carbono emitido pelo comprador dos créditos.
Essa insegurança faz com que esquemas atuais de precificação de carbono evitem que créditos gerados por preservação de florestas se infiltrem no mercado. Alguns sistemas de cap-and-trade, como o da Califórnia, permitem a prática, mas limitam sua ação a florestas situadas dentro do Estado.
Isso não seria um problema para um eventual mercado de carbono a ser criado no Brasil, já que o país tem alguns milhões de hectares de floresta carentes de ações de preservação. A principal linha de ação do governo federal, porém, tem sido a de tentar atrair investimento externo para preservação da floresta, em ações como a doação de R$ 1,5 bilhão que o governo da Noruega fez ao Fundo Amazônia. Não está claro ainda se um mercado doméstico de carbono com um apêndice florestal entraria em conflito com esse tipo de iniciativa ou com um esquema de REDD+.
Um dos problemas de incluir a preservação de florestas num mercado de carbono é que a emissão do desmatamento não é “precificável” da mesma forma que é o carbono queimado por uma usina para produzir energia ou por uma indústria para produzir aço. A maneira como o combate ao desmatamento entraria num mercado de carbono, então, é por meio de um mecanismo batizado de offset.
Esse dispositivo permite que uma empresa que não tenha conseguido comprar no mercado os créditos de carbono dos quais precisa possa “gerá-los” por conta própria. Ela faria isso por meio de um investimento particular, por exemplo, num projeto de preservação de floresta.
O problema é que, se as empresas quiserem obter todos os seus créditos de carbono por meio de offset, o preço da tonelada de CO2 cai e os cortes de emissão são todos deslocados para fora do setor, criando uma situação de insegurança sobre como garanti-los. Muitos mercados de carbono em atividade hoje, por isso, limitam a geração de créditos por offset a no máximo 10% da cota dos emissores.
Mesmo o mercado de carbono simulado do GVCES impõe um limitação para offset, de 10%. Todas essas restrições que os sistemas de cap-and-trade têm imposto aos esquemas de offset tornam improvável que um mercado de carbono possa adquirir um papel relevante em preservação de florestas no Brasil, mas isso não impede que políticas de REDD+ sejam implementadas de forma independente dos mercados.
Dar ou leiloar?
Outro debate que o Brasil terá de fazer caso decida implementar um mercado de carbono é o de como distribuir as permissões de emissão de CO2. Existem basicamente duas formas de fazer isso. A primeira é fazer uma distribuição gratuita, usando desempenho ou fatia de mercado como critério, e outra é leiloar as permissões. Alguns mercados usam um sistema misto.
Após alguns problemas enfrentados com preço do carbono — sobretudo no mercado europeu, que é mais antigo – criou-se uma percepção geral de que, quando as alocações gratuitas são muito amplas, o mercado fica sujeito a distorções. Sistemas de correção podem ser implementados, mas um uso mais consistente de leilões parece ser a melhor forma de dar ao CO2 um preço condizente com a realidade de mercado e de evitar que algumas empresas consigam obter lucro em cima do processo com especulação, sem estarem de fato contribuindo para a redução de emissões.
É provável que, com tantas experiências internacionais para aprender, um futuro mercado de carbono no Brasil venha a adotar fórmulas mistas. Isso vale não só para a política de alocação de permissões, mas também na decisão sobre taxar ou o carbono. É possível, em princípio, que uma a tributação coexista com os mercados. Além disso, diferentes setores podem ser submetidos a diferentes fórmulas de mercado ou taxa, e cabe ao governo decidir se alguns deverão ter metas de corte de emissão maior que outros. E alguns setores podem ter meta de redução sem taxa nem mercado, e usarem como incentivo apenas uma penalidade prevista.
“Não existe um modelo de sistema único que vai salvar o planeta da mudança climática – nem para o Brasil nem para o mundo”, afirma Guarany Osório, economista do GVCES. “Em cada caso, é preciso implementar todo um pacote de instrumentos.”
O que é importante, prossegue, é ter em mente que o mercado de carbono não é algo que pode ser implementado do dia para a noite. É consenso entre os especialistas da área que o Brasil já está atrasado nesse debate.
Rafael Garcia é jornalista especializado em ciência e colunista da “Folha de S.Paulo”.