Philip Fearnside no Inpa, em 2022. (Foto: Cesar Nogueira/Amazônia Real)

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“BR-319 pode empurrar clima global a ponto de não retorno”, diz especialista

Para Philip Fearnside, pesquisador do Inpa, promessas de governança não têm fundamento. “A vida real não seguiu o plano”, diz, lembrando da BR-163

25.07.2024 - Atualizado 07.08.2024 às 17:18 |

DO OC – Na tarde desta quinta-feira (25/7), uma liminar da Justiça Federal do Amazonas suspendeu a licença prévia (LP) para o asfaltamento do trecho do meio da BR-319  (Manaus-Porto Velho), concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no último ano do governo Bolsonaro. A decisão foi favorável a uma ação civil pública ajuizada pelo Observatório do Clima, que apontou que o Ibama atestou a viabilidade ambiental da obra desconsiderando dados técnicos e uma série de pareceres elaborados pelo próprio órgão ao longo do processo de licenciamento ambiental. 

A suspensão da LP interrompe a escalada de pressões pela liberação do empreendimento, que se intensificavam à revelia da nulidade da licença emitida em 2022. Nesta entrevista, Philip Fearnside, pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia em Manaus (Inpa), discute os diversos problemas dessa ofensiva, destacando o que ficou de fora das análises sobre o impacto ambiental da obra. 

Entre as ausências, estão as consequências climáticas do asfaltamento da BR-319. Para Fearnside, que é Doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA), o asfaltamento da BR-319 e estradas estaduais em seu entorno induzirá desmatamento suficiente para alterar o clima global de maneira irreversível. Além das emissões das gigantescas quantidades de carbono armazenado nas árvores e no solo da floresta, a derrubada inviabilizaria a formação dos “rios voadores” que transportam água para diversas regiões do Brasil. 

Vivendo desde os anos 1970 na Amazônia, o pesquisador recebeu, em 2007, o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC).  Sua vasta obra (são mais 600 publicações científicas e 500 textos de divulgação), que é também uma radiografia dos processos históricos de devastação da floresta. Relembrando experiências anteriores, ele alerta aqui para a falta de fundamento das promessas de governança e sustentabilidade para a BR-319.

Leia a entrevista. (LEILA SALIM)

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Quais seriam os impactos climáticos do asfaltamento do trecho do meio da BR-319 no atual contexto?

É muito importante entender que a BR-319 não é algo separado das outras estradas que estão planejadas e se conectariam a ela, como as rodovias estaduais AM-366 [que sairia da BR-319, cruzaria o rio Purus em Tapauá e ligaria a estrada a Tefé, Coari e Juruá] e AM-343. Isso significa expor um enorme bloco de florestas a oeste do rio Purus, na chamada região Trans-Purus, o que tem enormes implicações climáticas. 

Aquela região é fundamental para a reciclagem de água [aproximadamente metade da água que cai como chuva ali é devolvida ao ar como vapor d’água],  que é transportada pelos chamados “rios voadores” para outras regiões do Brasil, como o Sudeste, o Sul e o Centro-Oeste. Além disso, a região é também um enorme estoque de carbono, que, se emitido pela derrubada da floresta, é suficiente para empurrar o clima  global para o ponto de não-retorno. Então, do ponto de vista climático, são duas coisas gravíssimas: o comprometimento da regulação climática e as emissões em grande escala que resultariam do desmatamento. A articulação com as estradas estaduais precisa ser entendida como parte do impacto da BR-319 – e isso está completamente fora das discussões feitas no processo de licenciamento. 

O que tem sido considerado quanto ao impacto ambiental do empreendimento?

As discussões só tem considerado o que acontece à beira da estrada, ignorando mesmo as áreas já ligadas a Manaus – como Roraima, pela BR-174, que conecta Manaus a Boa Vista –, que, com a BR-319, vão receber a migração da região Amacro (Amazonas, Acre e Rondônia), grande foco de desmatamento que fica no ponto sul da BR- 319. Roraima é notório por estar entre os estados brasileiros que têm menor proteção ambiental, e isso não está sendo considerado. Seus principais políticos, inclusive o governador, apoiam os garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, por exemplo. 

A abertura das estradas aumentará o desmatamento muito além do que está na beira da estrada, com ação de grileiros, madeireiros e crime ambiental. E, mesmo na parte da beira da estrada, há um discurso de que vai haver governança ambiental para controlar o desmatamento, o que não tem nenhuma sustentação. 

Por quê? O que há de errado com as promessas de mais governança ambiental?

O relatório do Grupo de Trabalho BR-319, do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) do Ministério dos Transportes, usa a BR-163 (Santarém-Cuiabá) como exemplo para desenvolver as ações de governança, o que é uma grande ironia. A BR-163 é um desastre em termos de governança, e contou com um esforço muito maior do que se vê agora para a BR-319. Havia o Plano BR-163 sustentável, do governo federal com 32 organizações da sociedade civil, reunindo os melhores ambientalistas e acadêmicos para trabalhar no programa. 

A região impactada pela BR-163 virou um dos maiores focos de desmatamento ilegal, extração de madeira, garimpagem, grilagem de terras e invasão de terras indígenas. Ali, se promoveu a redução da Terra Indígena Baú e da Floresta Nacional do Jamanxim, depois dadas a grileiros. E foi nessa região onde foi organizado o Dia do Fogo em 2019, por fazendeiros do entorno da rodovia. E é isso que o Dnit apresenta como exemplo de governança ambiental para a BR-319! 

Esse tipo de exagero sobre o que a governança pode fazer é usado como uma ferramenta de pressão para aprovar a obra. Mas não  significa que é isso que vai acontecer. Há o histórico de outras obras, como a BR-174 (Manaus-Boa Vista), em 1998: quando ela foi asfaltada, se dizia que seria um “corte cirúrgico” na floresta, e que não iria acontecer nenhum desmatamento. E agora, nos dois últimos meses, temos visto as notícias sobre as intensas queimadas na região sul de Roraima.

Tudo isso significa que a história real não segue o plano, e que anunciar governança não resolve. É preciso que se tome as decisões reconhecendo isso. O que se quer é abrir uma área pela qual entrarão grileiros, garimpeiros, que não seguirão esse anúncio e contam com o apoio de políticos locais. 

Além desse relatório, o Dnit apresentou o Plano Básico Ambiental da BR-319. Ele segue a mesma linha?

Assim como o relatório do Dnit, o PBA se resume a pensar o  impacto ambiental apenas como aquilo que acontece à beira da estrada. O ponto central deveria ser considerar que o maior impacto da obra é fora dessa área. É preciso discutir a migração dos processos indutores de desmatamento para uma enorme área, basicamente a metade que sobra da floresta amazônica estaria sendo aberta. Caso pergunte-se, por exemplo, qual o plano para controlar o desmatamento em Roraima, não haverá. E isso está diretamente vinculado ao asfaltamento da BR-319. 

E ainda há toda a abertura da área a Oeste, com governança ambiental que ficaria a cargo do governo estadual. Os órgãos ambientais estaduais são muito mais fracos do que  o Ibama, e ficam muito mais submetidos a pressões dos políticos locais.

Foi isso que aconteceu aqui [no Amazonas] em 2017, que foi um marco: foram as primeiras invasões de balsas de garimpeiros no Rio Madeira, e os escritórios do Ibama e ICMBio em Humaitá foram queimados. Depois disso, o governador simplesmente pressionou os órgãos estaduais pelo licenciamento do garimpo e aprovou. Ou seja: os garimpeiros foram premiados pelo crime. 

Como a grilagem é favorecida por essa articulação entre estradas com a BR-319?

Com a BR-319, a pressão sobre órgãos estaduais por licenciamentos como esse ocorrido para o garimpo após a invasão em 2017 aumenta ainda mais. O lobby “Amigos da 319”, por exemplo, também atua pela construção da AM-366. O trajeto da primeira parte da AM-366 e todo o trajeto da AM-343 já estão reivindicados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) por grandes grileiros. 

Os ribeirinhos não tem sequer acesso à internet para fazer a reivindicação do CAR. Há um estudo de pesquisadores da Universidade Federal de Rondônia mostrando que os empresários do agronegócio, após a expansão na região Amacro, miram agora justamente essa região, começando pelo Vale do Rio Purus e depois expandindo para outros vales a oeste. As áreas griladas podem ser vendidas justamente a esses atores do agronegócio. A coisa pode seguir rapidamente, e toda aquela área são terras devolutas [áreas públicas ainda não destinadas pelo Estado], que são mais suscetíveis a grileiros. 

Esta entrevista é a segunda publicação da série do Observatório do Clima sobre a BR-319. Clique aqui para ler a primeira.

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