Desmatamento em trecho da BR-319. (Foto: Orlando K. Jr./ FAS)

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Pressão por BR-319 aumenta e tem ingerência em decisões ambientais

Plano ambiental apresentado inclui monitoramento anual de desmate por satélite, quando fiscalização deveria ser diária; cientistas estimam impactos climáticos globais

24.07.2024 - Atualizado 27.07.2024 às 05:33 |

DO OC – Já imaginou o Ibama escrevendo um relatório com conclusões sobre a engenharia de uma ponte? Foi mais ou menos isso que o Ministério dos Transportes fez, ao publicar um relatório que conclui pela “viabilidade ambiental e técnica” de uma estrada na Amazônia. No mês passado, a ofensiva pelo asfaltamento do chamado trecho do meio da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) ganhou dois novos capítulos. 

O relatório do Grupo de Trabalho da BR-319, coordenado pelo Ministério dos Transportes, e o Plano Básico Ambiental (PBA) apresentado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) são, segundo especialistas ouvidos pelo Observatório do Clima, as duas expressões mais recentes de uma pressão antiga para a aprovação do empreendimento, que avança ignorando dados técnicos, análises científicas, decisões das comunidades afetadas e uma série de pareceres do processo de licenciamento ambiental. 

Segundo ambientalistas e pesquisadores, a pavimentação da faixa de 405 km no coração da área mais preservada da Amazônia carrega o risco potencial de não “apenas” inviabilizar permanentemente o controle do desmatamento na Amazônia. Nas condições atuais, a ação de grileiros e madeireiros ilegais resultaria em uma derrubada descontrolada da floresta capaz de impactar globalmente o clima de maneira irreversível, em função das emissões de gases de efeito estufa por desmatamento. Na outra ponta, a bancada ruralista do Congresso Nacional é árdua defensora do projeto, também apoiado por políticos da região Norte de outros campos políticos e pela ala desenvolvimentista do governo federal.

A BR-319 foi inaugurada em 1976 pela ditadura militar, com 885 km totais de extensão e sem qualquer licenciamento ambiental. Não durou muito: em 1988, o trecho do meio, alvo da disputa atual, foi abandonado por falta de viabilidade econômica – não havia tráfego suficiente para arcar com seus altos custos de manutenção – e a rodovia se tornou intransitável. A floresta se regenerou e cobriu partes inteiras do que fora asfaltado.  

Em 2005, primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o Ministério dos Transportes passou a defender a “reconstrução” da rodovia. O empreendimento, segundo Philip Fearnside, pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), é na verdade a “construção de uma nova rodovia no mesmo traçado da anterior”, já que a vegetação se reinstalou na área. Em 2007, Lula anunciou a destinação de investimentos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) para o empreendimento. 

A obra começou, mas apenas nas duas pontas da rodovia. O trecho do meio, mais sensível, não obteve licenciamento ambiental pelo Ibama. Como destaca Fearnside, que desde os anos 1970 reside em Manaus, a legislação ambiental brasileira se tornou mais robusta, com exigências que não existiam durante a ditadura. Em 2010, Carlos Minc, então ministro do Meio Ambiente, declarou estar sofrendo “muita pressão” pela liberação das obras, em queda de braço com o então Ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento. 

Quase 15 anos depois, a situação não é muito diferente – porém, agravada pela licença prévia para o empreendimento concedida durante o governo de Jair Bolsonaro, que, segundo especialistas, é nula. 

Licença judicializada

O projeto de 2005 para a pavimentação do trecho do meio inaugurou uma longa história de disputas. Até que, em 2022, nos estertores do governo Bolsonaro, uma licença prévia foi emitida pelo Ibama. O órgão era então presidido por Eduardo Bim, investigado junto ao ex-ministro Ricardo Salles por contrabando de madeira nativa extraída ilegalmente da Amazônia para os Estados Unidos e a União Europeia.

Ignorando pareceres técnicos do próprio Ibama, do Ministério do Meio Ambiente e de outros órgãos ambientais, Bim concedeu o licenciamento da obra em julho de 2022. “A licença prévia (LP) concedida pelo governo Bolsonaro é nula. As condicionantes ambientais incluídas na LP não enfrentam o principal impacto da obra, reconhecido várias vezes no processo pelo próprio Ibama: o crescimento exponencial do desmatamento na região de influência da rodovia”, diz Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama. 

Ela destaca que o Ibama alertou diversas vezes para a gravidade e a irreversibilidade das consequências do empreendimento ao meio ambiente. Além disso, segundo Araújo, o Grupo de Trabalho formado na época da gestão Minc por órgãos ambientais indicou expressamente medidas pré-condicionantes, ou seja: ações de governança ambiental que deveriam ser implementadas antes da expedição da licença prévia, o que também foi ignorado pela licença emitida. 

“Esqueçam eficácia do Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia se essa obra for concretizada sem a garantia de governança e recursos para o enfrentamento do desmatamento ilegal. Será um desastre nesse sentido”, afirma a ex-presidente do Ibama. Atualmente, uma Ação Civil Pública na 7ª Vara Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas pede a anulação da LP. 

“Soluções inovadoras”

Foi nesse contexto que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) publicou o relatório citado na abertura desta reportagem, assinado pelo Grupo de Trabalho da BR-319 do Ministério dos Transportes. O documento de 68 páginas conclui pela “viabilidade técnica e ambiental” do empreendimento – uma prerrogativa que é, no entanto, do processo de licenciamento ambiental a cargo do Ibama. 

Organizações da sociedade civil dizem que o documento é recheado de “erros de avaliação, informações distorcidas e inverdades”. Em nota, Observatório da BR-319, Observatório do Clima e GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental afirmam que o relatório ignora dados e análises produzidos ao longo de anos pela academia e a sociedade civil, que apontam preocupações ambientais, sociais e econômicas em relação ao empreendimento. “O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) foi expressamente informado no processo de que não há governança ambiental capaz de fazer frente à magnitude do desmatamento que advirá do empreendimento’’, dizem as organizações. 

No entanto, ignorando as condicionantes que deveriam estruturar a governança ambiental antes de que qualquer licença prévia fosse concedida, como determinado pelo Ibama, o GT do Ministério dos Transportes apresenta “ações estratégicas futuras”: “uma rodovia singular merece soluções inovadoras”, diz o documento. Entre elas, está a construção de uma cerca de 500km, em todo o trecho do meio, com passagens subterrâneas e suspensas para “garantir a preservação ambiental” da fauna e da flora. 

Na entrada e na saída do trecho do meio, cercado, estariam dois portais de fiscalização, segundo o documento. O relatório destaca ainda as contribuições da Polícia Rodoviária Federal ao GT: “Instalação de 03 (três) Unidades Operacionais ao longo da BR-319”, em Careiro (AM), Manicoré (AM) e Humaitá (AM). “Vale ressaltar, que das três Unidades Operacionais mencionadas, a única que possui contrato assinado para a sua construção é a Unidade Operacional Humaitá”, segue o relatório. No entanto, a própria licença prévia concedida pelo Ibama em 2022 prevê a instalação de três postos, “ a serem instalados antes ou concomitantemente à implantação do empreendimento”. 

Para efeito de comparação, a Via Dutra, trecho Rio de Janeiro/São Paulo, uma distância semelhante ao trecho do meio, conta com nove unidades operacionais da Polícia Rodoviária Federal. Se o contingente é necessário na Dutra – por ser uma estrada de enorme fluxo ligando as duas maiores cidades do Brasil –, cabe questionar por que o mesmo não vale para a BR-319, uma das estradas com o maior potencial de crime ambiental do país.

Para Philip Fearnside, no entanto, um dos pontos mais reveladores do documento do Ministério dos Transportes é aquilo que toma como exemplo: “O relatório do Grupo de Trabalho menciona repetidamente a rodovia BR-163 (Santarém-Cuiabá) como um exemplo que poderia fornecer um modelo para governança ao longo da BR-319. A ironia disto é considerável, uma vez que a BR-163 é um exemplo exatamente do oposto: demonstra o perigo de expectativas irrealistas de uma governança que controle o desmatamento e outros impactos ambientais que, na prática, estão em grande parte fora do controle governamental”, afirma. 

“A BR-163 foi licenciada em 2005 com base no Plano BR-163 Sustentável, mas a história não seguiu o plano. A BR-163 tornou-se um dos principais focos de grilagem de terras, invasão de Terras Indígenas e desmatamento, extração madeireira e mineração de ouro ilegal”, completa o pesquisador do Inpa. O município de Novo Progresso, no Pará, campeão em desmatamento e queimadas nos últimos anos, é cortado pela rodovia. 

Feranside destaca ainda a referência do relatório aos processos de “escuta” à sociedade civil e às comunidades afetadas, sobretudo povos indígenas, que revela falhas em relação à garantia de participação nas decisões. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, exige uma consulta às comunidades, e não a simples escuta. 

“Uma consulta é muito diferente de uma audiência pública ou de uma “escuta”, pois significa que os povos indígenas impactados têm voz na decisão sobre a existência do projeto como um todo, e não apenas a oportunidade de oferecer sugestões sobre como ele é a ser implantado e como os danos serão mitigados ou compensados, e entende-se que as pessoas consultadas têm o direito de dizer não”, diz. . 

Satélite uma vez ao ano

Na esteira do relatório, o Dnit lançou ainda o Plano Básico Ambiental (PBA) da obra, uma das exigências para as etapas seguintes do licenciamento ambiental, após a licença prévia. O PBA é um dos requisitos para a obtenção da licença de instalação (LI, a segunda etapa), que autoriza a construção propriamente dita. Após a conclusão da obra, pode haver ainda uma terceira etapa, a licença de operação (que autoriza o tráfego na rodovia).

Segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, ao lançar o PBA o Ministério dos Transportes intensifica a pressão pelo licenciamento do empreendimento, a despeito dos questionamentos sobre a validade na licença prévia emitida. “O Ibama não deveria dar sequência ao licenciamento sem uma reavaliação da LP. O Plano Básico Ambiental apresentado recentemente pelo Dnit para a concessão da Licença de Instalação não resolve os problemas relativos a esse empreendimento. Apresenta referências genéricas que não enfrentarão o garimpo, grilagem e extração ilegal de madeira”, diz Suely Araújo. 

Em 859 páginas, o PBA apresenta os “Programas Ambientais que devem ser executados durante as obras de pavimentação e melhorias no Trecho do Meio”, mais uma vez contradizendo o princípio de pré-condicionantes estabelecido pelo Ibama. Entre eles, estão os programas de monitoramento da chamada “faixa de domínio” (a área adjacente à rodovia, que corresponde a 50 metros para cada lado a partir do eixo da BR-319), de controle e recuperação dos passivos ambientais, de supressão vegetal, de proteção da flora e da fauna e de indenização, reassentamento e desapropriação. 

No entanto, em todo o documento não há referência à instalação de postos de monitoramento/fiscalização, a não ser na própria Licença Prévia de 2022 (anexa ao PBA) e no relato das falas de entrevistados. 

Na planilha que apresenta uma síntese dos impactos ambientais e as medidas, indicadores e programas destinados para enfrentá-los, o item “implantação de atividades agropecuárias” é classificado como “muito significativo”. Uma das medidas apresentadas para contê-lo é a realização anual de análises comparativas de imagens de satélite do ano corrente em relação ao ano anterior, “para identificação da abertura de acessos/ramais irregulares, ocupações na faixa de domínio, desmatamento de áreas preservadas e outros passivos ambientais que possam ocorrer na faixa de domínio”. Outra medida apresentada no item é “identificar os pontos frágeis e adotar estratégias que inibam a expansão de atividades ilegais como garimpo, grilagem, extração ilegal de madeira”.

Na opinião de Suely Araújo, esse é um tipo de monitoramento que deveria ser diário. “O PBA traz medidas absolutamente insuficientes, como realizar anualmente análise comparativa de imagens de satélite para identificação de ramais irregulares. Ora, isso tem de ser feito diariamente! É como esperar o crime ser cometido para constatá-lo, e isso é apenas um exemplo dos muitos absurdos desse processo”, diz. 

Para Philip Fearnside, a identificação dos impactos apenas na chamada “faixa de domínio” é um grave erro do PBA, também presente no relatório do Grupo de Trabalho. “Quando se trata de medidas planejadas contra impactos, se fala apenas do que acontece à beira da estrada. Mas o maior impacto dessa obra acontece fora dessa área”, aponta. 

“Não são mencionados de forma alguma os drásticos impactos potenciais do desmatamento ao longo das rodovias planejadas que conectariam à BR-319, como AM-366 e AM-343, que abririam a vasta área de floresta tropical Trans-Purus [a parte mais preservada do bioma] a oeste da BR-319”, completa. (LEILA SALIM)

Esta reportagem é a primeira de uma série sobre a BR-319 que será publicada pelo Observatório do Clima ao longo desta semana.

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