A encruzilhada das emissões do desmatamento
Ações no setor de uso da terra anunciadas pelo Brasil podem não ser suficientes para reduzir as emissões de gases-estufa em 43% até 2030, argumentam Raoni Rajão e Britaldo Soares-Filho
RAONI RAJÃO
BRITALDO SOARES-FILHO
ESPECIAL PARA O OC
Nos últimos anos, o Brasil construiu um histórico excepcional em compromissos e redução efetiva de gases de efeito estufa (GEE) na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Em 2009, o Brasil propôs, como parte do Acordo de Copenhague, reduzir suas emissões de GEE entre 36,1% e 38,9% até 2020, em relação a um cenário tendencial (business as usual). Agora, em uma jogada ousada, o Brasil apresentou à 21ª Conferência das Partes (COP21) em Paris como sua Contribuição Nacionalmente Determinada Pretendida (INDC) uma proposta para reduzir suas emissões de GEE em 43% em relação a 2005, até 2030. Este é um compromisso substancial em diferentes aspectos.
Primeiro, é uma meta absoluta, semelhante às adotadas pelo Anexo 1 do Protocolo de Kyoto, em vez de uma redução relativa, tal como proposto pela China e pela maioria dos países em desenvolvimento para a COP21. Em segundo lugar, representa uma redução de 27% em relação à linha de base mais tradicional (1990); um alvo que está acima do compromisso dos Estados Unidos em relação ao mesmo período (17%) e não muito longe da proposta da União Europeia (40%), apesar de suas maiores responsabilidades históricas e capacidades.
O Brasil já está no caminho para alcançar esses resultados. Enquanto a maioria dos países em desenvolvimento continuou a aumentar as suas emissões a um ritmo vertiginoso, o Brasil reduziu as suas emissões totais de 2 GtCO2e em 2008 para 1,5 GtCO2e em 2013, graças, principalmente, à queda nas taxas de desmatamento – de 12,9 mil quilômetros quadrados por ano para 5,8 mil quilômetros quadrados por ano (1). Mesmo que isso não esteja muito longe do objetivo fixado para 2030, o país terá de aumentar consideravelmente os seus esforços de mitigação, a fim de compensar um esperado aumento nas emissões do setor de energia. Para este fim, o Brasil terá de enfrentar redução do desmatamento em outros biomas. Não está muito claro, no entanto, como as novas ações anunciadas como parte da INDC do Brasil para 2030 vão levar às reduções prometidas.
Emissões por desmatamento legal
A principal aposta do governo brasileiro para reduzir o desmatamento é acabar com o desmatamento ilegal até 2030, mediante a aplicação do Código Florestal do país (CF). Criada em 1934 e revista em 1965 e 2012, a lei foi transformada na década de 1990 em uma lei de fato ambiental através de uma série de decretos presidenciais. O CF requer que os proprietários de terras conservem a vegetação nativa em uma parcela da propriedade rural, deixando de lado uma Reserva Legal (RL), enquanto as restantes áreas podem ser eliminadas por meio de licenças governamentais (2). Para a INDC, o governo assume que a maioria dos desmatamentos ocorre de forma ilegal e, portanto, acabar com todo o desmatamento ilegal em 2030 seria suficiente para diminuir substancialmente as emissões provenientes do desmatamento.
Devido à falta de mapeamento nacional detalhado de uso terra, não está claro quanto do desmatamento recente do país era ilegal. No entanto, os dados dos Estados do Pará e Minas Gerais apresentam um quadro preliminar desta situação. Na Amazônia, o desmatamento legal representa cerca de 5%, com a maioria das derrubadas ocorrendo ilegalmente em áreas particulares e assentamentos. Isso ocorre principalmente porque apenas 20% da área de cada propriedade no bioma pode ser desmatada legalmente. Esse limite estrito também explica por que as ações de comando e controle previstas pelo Código Florestal foram um dos principais fatores que levaram à queda das taxas de desmatamento em 73% entre 2005 e 2014 (3).
O mesmo não acontece nos outros biomas, onde 65% a 80% de uma propriedade rural podem ser legalmente desmatados. Com base em dados da área legalmente autorizada para desmatamento em Minas Gerais, estima-se que entre 37% e 75% de todo o desmatamento fora da Amazônia são realizados sob autorização legal. No total, o país ainda tem 86 milhões de hectares de florestas nativas que poderiam ser legalmente desmatadas, a maioria no Cerrado (25 milhões de hectares) e Caatinga (39 milhões de hectares) (4).
O principal instrumento adotado pelo governo para conter o desmatamento também pode ter o efeito oposto. A fim de superar os limites da cara e seletiva aplicação da lei, o novo CF tem se espelhado na experiência dos estados de Mato Grosso para criar o Sistema de Cadastro Ambiental Rural (SICAR), um sistema nacional digital georreferenciado criado para monitorar o cumprimento do CF usando imagens de satélite. Mesmo com a promessa do SICAR de entregar um meio universal de controle de desmatamento com baixo custo, o sistema também traz o risco de aceleração das derrubadas legais, substituindo longos procedimentos baseados em papel por autorizações on-line simplificadas.
Aqui a história poderia se repetir. Desde o início da implementação do antepassado do SICAR no Estado de Mato Grosso, foi observado um aumento no desmatamento em parte graças ao novo sistema. Só em 2003, o governo do estado autorizou o desmatamento de 2.200 quilômetros quadrados de florestas nativas, o que representa 60% de todo o desmatamento daquele ano (9). Situação similar poderia ocorrer no futuro. Portanto, mesmo em um cenário de desmatamento ilegal zero, sem incentivos econômicos positivos ou outras políticas, autorizações legais seriam o suficiente para limpar 19 milhões de hectares em 2030 (ver Figura 1).
Alinhando ambição política e ação
Se o Brasil buscar atender a sua ambiciosa contribuição de mitigação, será fundamental que o governo restabeleça e expanda limites de desmatamento para outros biomas, como os atualmente em vigor no Cerrado e na Amazônia. Além disso, a fim de respeitar as reduções de desmatamento exigidas, será essencial oferecer alternativas econômicas para evitar o desmatamento legal. Um instrumento que poderia ser utilizado a este respeito é a Cota de Reserva Ambiental (CRA), um mecanismo de compensação de áreas desmatadas anteriormente de forma ilegal com áreas florestais dentro do mesmo bioma. No entanto, para que isto aconteça os governos federal e estadual devem optar por opções de regulamentação mais rigorosas, a fim de evitar que as CRA de baixo custo a partir de pequenas propriedades e dentro de áreas protegidas inundem o mercado.
Além disso, o mercado de CRA poderia tornar-se uma plataforma de negociação comum para uma ampla variedade de pagamento para programas de serviços ambientais. Nós denominamos este conceito como XCRA, em que os benefícios ambientais da negociação do CRA poderiam ser multiplicados para além da compensação da obrigação CF (13). O Brasil está no caminho certo para se tornar uma das primeiras economias emergentes de baixo carbono no mundo. Um compromisso de longo prazo com políticas mais fortes, no entanto, tanto no Brasil quanto no exterior, será essencial para superar os muitos desafios pela frente.
Raoni Rajão é professor de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia no departamento de Engenharia de Produção da UFMG e coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais (LAGESA) da mesma instituição
Britaldo Silveira Soares-Filho é professor titular do Departamento de Cartografia, Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é coordenador do Centro de Sensoriamento Remoto e da pós-graduação em Análise e Modelagem de Sistemas Ambientais da UFMG
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- Sistema de Estimativa de Emissão de Gases de Efeito Estufa (SEEG); http://seeg.eco.br/emissoestotais/.
- Federal Law 12.727, 17 October 2012; www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2012/Lei/L12727.htm
- Börner, J., et al Global Env. Change 29 (2014).
- Soares-Filho, et al. Science 344, no. 6182 (2014)
- INPE, Projeto Terraclass2012 (2014). http://www.inpe.br/noticias/arquivos/pdf/TerraClass_2012.pdf
- M. Ribeiro et al., Biol. Conserv. 142, 1141 (2009).
- R. Cury, O. Carvalho, “Manual para restauro florestal: florestas de transição” (Série Boas Práticas, 5 (IPAM, Canarana, 2011).
- C. Stickler et al., Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A. (2013), doi: 10.1073/pnas.1215331110.
- E.g., www.ief.mg.gov.br/bolsaverde.
- R. Rajão et al., Public Admin. Dev. 32, 229 (2012).
- E.g., aliancadaterra.org.br, responsiblesoy.org.
- Alvim, F., Soares-Filho, B. et al Cenários para a Pecuária de Corte Amazônica, available at: http://csr.ufmg.br/pecuaria/
- Rajão, R., Soares-Filho, B. et al Cota de Reserva Ambienta (CRA), available at: http://csr.ufmg.br/cra
- Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Projeto PRODES – monitoramento da floresta amazônica brasileira por satélite (INPE, São Paulo, 2013; http://www.obt.inpe.br/prodes/index.php).
- LAPIG, Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento, Dados Vetoriais de alertas de desmatamento no período de 2002 a 2012 (Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2013; http://www.lapig.iesa.ufg.br/lapig/index.php/produtos/dados-vetoriais).
- M.C. Hansen et al., High-Resolution Global Maps of 21st-Century Forest Cover Change. Science, 342, 850-853 (2013).
- C. Leite, M. Costa, B. S. Soares-Filho, L. B. V. Hissa, Historical land use change and associated carbon emissions in Brazil from 1940 to 1995. Global Biogeochem. Cycles 26, 2011-2029 (2012).