MP arquiva inquérito contra Projeto Saúde e Alegria
ONG do Pará teve escritório invadido pela polícia e 8.000 documentos apreendidos após Bolsonaro culpar ambientalistas por queimar a Amazônia
DO OC
DO SAÚDE E ALEGRIA
Após três anos de investigação, o Conselho Superior do Ministério Público do Pará decidiu por unanimidade arquivar o inquérito aberto pela Polícia Civil do Estado contra o Projeto Saúde e Alegria (PSA). A ONG teve seu escritório em Santarém invadido e seus equipamentos e documentos apreendidos em novembro de 2019, numa operação que prendeu brigadistas falsamente acusados de receber dinheiro para queimar a Amazônia.
Cerca de oito mil documentos administrativos do PSA levados pelos policiais na operação Fogo do Sairé foram minuciosamente investigados e periciados ao longo de três anos. Sem encontrar irregularidade, publicação do Diário Oficial da União nesta quarta-feira (3) oficializou o arquivamento da denúncia, feito pela 12ª Promotoria de Justiça de Santarém e Conselho Superior do Ministério Público
“Poderia até dizer que foi a maior auditoria e fiscalização de uma ONG na história, com a apreensão e investigação de notas fiscais, contratos, livros, discos rígidos e notebooks contábeis, enfim, todo o nosso depósito de arquivos administrativos dos últimos dez anos. Se havia alguma motivação em criminalizar organizações da sociedade civil, o que se deu foi o contrário, com essas acusações infundadas resultando num certificado de excelência nas nossas contas”, afirmou o coordenador-geral do Projeto Saúde e Alegria, Caetano Scannavino, após notificação do despacho.
O Inquérito Civil SIMP 008043-031/2020 averiguava falsidade documental nas contas do PSA. A perícia em uma década de documentação constatou a inexistência de irregularidades. “Era um resultado que a gente já esperava, pois é fruto de um trabalho sério que o Projeto Saúde e Alegria desenvolve há anos na região. Poderíamos até ter questionado na Justiça a apreensão desses documentos, mas optamos pelo espelhamento, pra que fizessem cópia de tudo e prosseguissem nas investigações. Fizemos questão que nos investigassem, e os resultados estão aí”, explica o fundador do PSA, Eugênio Scannavino. Há 36 anos o médico iniciou os trabalhos de promoção social, saúde, educação, renda, meio ambiente, somando esforços com o estado brasileiro no apoio aos programas de bem-viver para o desenvolvimento da região.
A Operação Fogo no Sairé foi deflagrada em 26 de novembro, depois que então presidente Jair Bolsonaro culpou falsamente as ONGs pelo recorde de queimadas na Amazônia naquele ano. No mesmo dia, quatro brigadistas voluntários do Instituto Aquífero Alter do Chão foram presos, falsamente acusados de terem provocado meses antes os incêndios na região em conluio com ONGs para fins de captação de recursos, envolvendo também a WWF, em uma narrativa surreal que citava até o ator Leonardo DiCaprio como apoiador.
Um dos brigadistas presos era funcionário da área logística do PSA. “A Polícia Civil chegou no nosso escritório de uma forma truculenta, armada com metralhadora, sem a gente saber por que, sem saber qual a acusação e, inclusive, sem decisão judicial clara, com um mandado de apreensão genérico, sem definir o quê, pra quê. Até entenderíamos se quisessem levar o computador e documentos do funcionário que foi preso, mas levaram tudo! Me pergunto o que uma prestação de contas de 2011 tem a ver com um incêndio em setembro de 2019?”, indagou Adriana Pontes, advogada, coordenadora administrativa/financeira do PSA.
O documento relata que “no dia 15 de setembro de 2019, um incêndio de grandes proporções atingiu a área florestal em Alter do Chão. A Polícia Civil instaurou um inquérito para investigar as causas do incêndio. O inquérito como resultado indireto apontou a hipótese de existência de possíveis irregularidades contábeis” e que durante a operação, “uma série de documentos foram coletados e encaminhados à 12ª Promotoria de Justiça de Santarém por envolver notas fiscais de entidades do terceiro setor”.
A partir daí, foi instaurado um procedimento no qual os documentos foram enviados para o Núcleo do Terceiro Setor em Belém, onde passaram por minuciosa análise. Em 12 de maio de 2022, o núcleo expediu uma nota técnica “concluindo a não identificação de qualquer indício de fraude documental na escrituração contábil do PSA”, tendo como foco maior as análises no período de 2017 a 2019, encerrando assim o inquérito por não terem sido encontradas irregularidades.
Adriana Pontes comentou que o arquivamento é fruto de um trabalho executado na ponta do lápis, de boas práticas e transparência. “A ironia é que poucos dias antes da apreensão policial, o PSA foi agraciado com o Prêmio ‘100 Melhores ONGs do Brasil’ com base em indicadores de gestão e administração financeira”. Todos os relatórios financeiros, as prestações de contas e os balanços patrimoniais são atualizados e auditados por um serviço independente para serem submetidos à análise do Conselho Fiscal do PSA e à aprovação pela assembleia geral de sócios, além da auditoria de cada um dos doadores.
Para Fábio Pena, um dos coordenadores da ONG, o pronunciamento do MPPA é resultado de uma séria, transparente e exigente administração fiscal da entidade que há mais de trinta anos desenvolve atividades na região amazônica, com compromisso e respeito às populações ribeirinhas. Somos reconhecidos por entregar benefícios diretos às comunidades por meio de nossos projetos, e para isso a correção na aplicação dos recursos é o primeiro passo.
Com o arquivamento do processo cível, encerra-se um triste episódio de nossa história, já que no âmbito criminal as acusações contra os brigadistas não se sustentaram, com as investigações paralelas da Polícia Federal desmentindo a Polícia Civil ao não apontar relação alguma de brigadistas e ONGs com o início dos incêndios. A Justiça Estadual perdeu para Federal inclusive a competência para julgar o caso, também em vias de arquivamento final.
Projetos cancelados em meio à investigação
A circulação de fake news impactou as atividades do PSA e, respectivamente, o público atendido pela ONG. “Foram momentos muito difíceis, uma campanha difamatória, uso indevido de nossas fotos nas redes sociais, incitação ao ódio, mas a rede de apoio e solidariedade foi muito maior. Se até nos surpreendeu, imagino que surpreendeu ainda mais os que armaram isso contra a gente. Nem por isso deixamos de ser prejudicados, injustamente, até porque quando se é acusado, vira assunto de primeira página dos jornais e quando se é inocentado, sai apenas uma notinha”, disse Caetano Scannavino.
No início de 2022, às vésperas de assinar um contrato de financiamento para um projeto para saúde da mulher junto a uma farmacêutica japonesa, os rumores de fraudes nas contas inviabilizaram a parceria, explicou a empresária e fundadora da Bem-Feito Soluções em Gestão, Ana Carolina Moretti: “Por conta das notícias vexaminosas veiculadas na mídia e com a abertura do inquérito contra o Saúde e Alegria, infelizmente fomos impedidos de prosperar com esta parceria”. Ao final de um processo de auditoria (due diligence), muito utilizado por grandes empresas para averiguar o modo de operação de fornecedores que estão para ser contratados, a ONG não recebeu o aval para realizar a implantação do projeto em saúde por parte da empresa patrocinadora do projeto, que por sua vez, segue rigorosas políticas de compliance nacionais e internacionais.
Para a empresária especializada em desenvolvimento e gestão de projetos, o PSA foi prejudicado e apesar do compromisso incansável da instituição na Amazônia e lisura atestada com a absolvição, os danos são irreparáveis. “É irreversível e lamentamos demais que tal injustiça tenha causado tantos danos a todos os lados desta história”.[:]