Paris: a batalha do torniquete
Relatório divulgado pela ONU com a soma da ambição dos planos nacionais apresentados para o novo acordo do clima ressalta necessidade de cortar CO2 mais e mais cedo para manter 2 graus ao alcance
CLAUDIO ANGELO (OC)
Há dois jeitos de ler o relatório apresentado hoje (30/10) pela UNFCCC (Convenção do Clima das Nações Unidas), que soma oficialmente pela primeira vez a ambição dos planos climáticos (INDCs) apresentados pelos países antes da conferência do clima de Paris. É possível achar que a taça de vinho está meio cheia ou meio vazia.
A secretária-executiva da Convenção, Christiana Figueres, optou pelo primeiro modo de leitura. Ao apresentar o relatório à imprensa na manhã desta sexta-feira, a costa-ricense, cujo papel é animar o auditório quando os representantes de mais de 190 países se juntarem na capital francesa daqui a um mês para fechar o novo acordo do clima, chamou as INDCs de “momento histórico”. E elogiou o “envolvimento sem precedentes” dos governos.
Ela tem razão. Somadas, as 119 metas apresentadas por 146 países até dia 1o de outubro, o prazo oficial dado pela Convenção, representam 86% das emissões de carbono do mundo. Nunca antes na história deste planeta tantas nações voluntariaram tantas propostas para combater a mudança climática. A mera existência das INDCs torna a obtenção de um acordo em Paris uma virtual certeza. E, em parte (apenas em parte), elimina preocupações de alguns países sobre a natureza legal desse acordo, já que é mais fácil cumprir algo que se pôs na mesa voluntariamente do que uma meta imposta de cima para baixo, como foram as do Protocolo de Kyoto, o primeiro acordo do clima, de 1997.
“O que os países estão propondo aqui é paradoxalmente mais forte do que o legalmente vinculante tradicional, porque essas metas derivam do interesse nacional”, afirmou Figueres.
A avaliação da UNFCCC calcula que as INDCs propostas até aqui, por países ricos, pobres e emergentes, têm a capacidade de reduzir em 9% as emissões per capita de todo o globo em 2030 e de tirar, naquele mesmo ano, 4 bilhões de toneladas de CO2 da atmosfera.
A própria Convenção não fez essa conta na análise oficial, mas citou um outros cálculos, feitos pela Agência Internacional de Energia e pelo projeto europeu Climate Action Tracker, de que a implementação das INDCs tiraria o mundo de uma trajetória de aquecimento global de 4oC até o final do século e poderia limitar o aumento de temperatura a 2,7oC – algo bem mais próximo da meta, estipulada pelos países em 2009, de limitar o aquecimento global a menos de 2oC em relação à era pré-industrial.
“Nós estamos decididamente nos movendo no rumo da transição para uma economia de baixo carbono”, disse Christiana Figueres. “Essa transição já começou.”
Tudo isso é verdade. Só que, quando se olha para Paris através do relatório divulgado pela UNFCCC, é inevitável esbarrar na metade vazia da taça de vinho. E o recado que ela tem para dar é bem sóbrio.
“Mesmo com as INDCs implementadas, nós chegaríamos a 2030 com emissões crescentes”, resume Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima, que participou da equipe que revisou o relatório a pedido da UNFCCC. As emissões globais em 2030 seriam da ordem de 56,7 bilhões de toneladas de CO2 equivalente, um aumento de 37% a 52% em relação a 1990 – ano a partir do qual, segundo a Convenção do Clima, elas deveriam ter começado a declinar.
Segundo o IPCC, o painel do clima das Nações Unidas, se quiser ter mais de 66% de chance de ficar dentro do limite dos 2oC, a humanidade precisa limitar todas as suas emissões de CO2 daqui até o fim dos tempos em 1 trilhão de toneladas. Caso cheguemos para a guerra climática de 2030 armados apenas com as INDCs existentes, teremos usado até aquela data cerca de 740 bilhões de toneladas, ou 74% do “orçamento de carbono”. Teremos apenas mais 260 bilhões de toneladas para queimar até 2100, estourando o limite por volta de 2035.
Como não é razoável supor que após 2030 nenhuma outra ação de mitigação de emissões de carbono será adotada – já que a obtenção de um acordo climático em Paris é uma virtual certeza –, conclui-se que o esforço de corte de 2030 em diante teria de ser hercúleo: sobrariam 13 bilhões de toneladas de CO2 para toda a humanidade emitir por ano de 2031 até 2050, sendo que só a China chegaria a 2030 emitindo mais do que isso.
Como ainda não se conhece tecnologia capaz de reduzir as emissões globais em mais de 75% de um ano para o outro, os números apresentados pela UNFCCC só permitem uma conclusão: se estiver falando sério sobre os 2oC, a humanidade terá de começar a ajustar a ambição das INDCs bem antes. Esta será, de fato, a grande batalha de Paris. Podemos chamá-la de “batalha do torniquete”.
O torniquete (“ratchet”, em inglês) é um mecanismo previsto no acordo segundo o qual a ambição global será ajustada para cima de tempos em tempos. A necessidade de tal mecanismo foi identificada porque já se sabia de antemão que a primeira rodada de propostas nacionais jamais resolveria o problema dos 2oC. Além disso, novas descobertas da ciência podem exigir uma descarbonização ainda mais rápida, então é preciso ter flexibilidade nas metas.
Só que não está claro a esta altura a partir de que momento o torniquete deveria começar a apertar. Alguns países, como a China, querem que o ajuste comece apenas a partir de 2030, com revisões de dez em dez anos. Outros, como o Brasil, defendem ajustes de cinco em cinco anos. A data de início não está clara, porém – no rascunho do novo acordo há diversas opções.
Na semana passada, em Bonn, na Alemanha, pesquisadores do projeto internacional Miles apresentaram uma proposta: o torniquete deveria funcionar já a partir de 2020, quando o novo acordo do clima entrar em vigor. Sem isso, avaliam, o custo do corte de emissões a partir de 2030 ficaria impagável para a humanidade. O relatório da UNFCCC ratifica essa visão.
Para Figueres, a chave do sucesso em Paris consiste em dois elementos: primeiro, na forma como as INDCs serão incorporadas ao acordo (hoje elas não o integram). Segundo, “o que acontece depois?”
O secretário de Estado da Alemanha, Jochen Flasbarth, ressaltou que os 2,7oC não são o objetivo final da negociação de clima – e nem sequer podem ser dados de barato, já que prometer é uma coisa, cumprir é outra. Mas se disse esperançoso quanto aos ajustes futuros: “Nós sabemos que os países têm mais ambição do que colocam sobre a mesa”, disse.