“Regiões da África estão melhores que nós em adaptação”, diz brasileira do IPCC
Patrícia Pinho, do Ipam, diz que Recife está na vanguarda do planejamento para se adaptar a extremos, mas falta vontade política para implementá-lo
JAQUELINE SORDI
DO OC
Com mais de 90 mortos, 26 desaparecidos e pelo menos 6 mil pessoas desabrigadas devido às fortes chuvas que atingiram a região metropolitana de Recife desde a última quarta-feira (25), Pernambuco hoje vive uma situação de calamidade semelhante àquelas vivenciadas recentemente em Petrópolis (RJ), na Bahia e em Minas Gerais. Só que com um agravante: o Estado está, em teoria, na vanguarda do combate às mudanças climáticas.
Em 2019, Recife foi a primeira capital do país a reconhecer o estado de emergência climática global, e elaborar um detalhado plano de análise de riscos e estratégias de adaptação. Tudo isso a partir da constatação de que, em um mundo mais quente, eventos extremos, como tempestades e enchentes, ocorrerão cada vez com mais intensidade e frequência, deixando populações mais pobres, sobretudo costeiras e no sul global, mais vulneráveis.
“Recife é uma cidade que já tem diagnóstico, mas falta vontade política para colocar as ações em prática”, afirma Patrícia Pinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Ela é coautora do relatório do IPCC (o painel do clima da ONU) que, em fevereiro deste ano, apontou o grave problema de desigualdade nos impactos climáticos – as mortes por eventos extremos nos países pobres são 15 vezes maiores que nos ricos.
Pernambuco tem planos climáticos há mais de uma década, desenvolvidos no mandato do governador Eduardo Campos, pai do atual prefeito de Recife, João Campos (PSB). Quase a totalidade das vítimas pelas tempestades da última semana vive, ou vivia, em zonas de risco e em situação de vulnerabilidade, com moradias construídas irregularmente em encosta de morros e em bairros com menor acesso a infraestrutura básica e serviços de saúde.
“Os que menos têm contribuído para o aquecimento global são os mais afetados por ele. Essa vulnerabilidade aos eventos extremos, que serão cada vez mais frequentes, tem cor, idade, raça e geografia. E é aí que entra a questão de justiça, ou da injustiça, climática. Infelizmente é isso que estamos vendo no Nordeste do país”, afirma a pesquisadora.
Leia a entrevista.
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O relatório do IPCC avaliou os impactos, vulnerabilidades e capacidade de adaptação à crise climática global e regionalmente. É possível identificar quais regiões estão mais vulneráveis?
O aquecimento global tem levado a uma desestabilização dos sistemas climáticos. Isso está fazendo com que, entre outras coisas, haja um aumento na frequência e intensidade de eventos extremos, como precipitações, ondas de calor, secas extremas, entre outros. Observamos também como esses eventos afetam de forma diferente a vida das pessoas, seja por impactos imediatos – e aqui podemos citar os deslizamentos e mortes ocorridos em Pernambuco, que matam e desabrigam principalmente pessoas com menos acesso à infraestrutura – como a médio e longo prazo, caso por exemplo de secas que podem levar a uma insegurança alimentar.
As consequências mais devastadoras ocorrem nas populações do Sul global. Essas são as pessoas que menos contribuem para a problemática da crise climática. No entanto, elas são as mais afetadas porque vivem em áreas de risco. Infelizmente é isso que vimos, em escala regional, em Pernambuco: os mais pobres, os agricultores familiares e aqueles com menos acesso são os que estão sofrendo mais. Chuvas extremas, enchentes e deslizamentos são os eventos que mais causam danos no Brasil. As populações vulneráveis são as mais afetadas porque perdem suas casas, sua saúde, sua fonte de renda, seus bens materiais e também aspectos intangíveis como por exemplo seu modo de vida, sua vizinhança. Quando você perde tudo, você perde o senso de pertencimento. Esta é outra dimensão da questão que temos destacado, que vai além das perdas econômicas.
Apesar de ter dedicado um capítulo inteiro à questão de adaptação, perdas e danos, a última versão do relatório do IPCC deixou de fora termos já amplamente usados como “justiça climática”. A menção a “países mais ou menos vulneráveis” também foi alterada para um termo mais genérico, “regiões”, que evita responsabilização individual. Por que ainda é tão difícil falar sobre isso?
É desconfortável porque é uma questão ética, de direitos humanos. Gera desconforto por parte dos governos porque toca no cerne da questão, que é a desigualdade socioeconômica, a marginalização histórica, fruto de um legado colonialista. Ao mesmo tempo em que a ciência coloca grande parte do fenômeno da crise climática na conta dos países do Norte global, os países desenvolvidos, ela mostra que os impactos são maiores no Sul.
Quando você menciona populações mais vulneráveis, você usa a faixa etária como um exemplo….
Sim, existe um conceito dentro da questão da justiça climática que aborda a crise de ansiedade na juventude. A ciência já mostrou que há avanços importantes em termos de adaptação, com planos estratégicos de redução de riscos já estabelecidos em muitos países. No entanto, no Brasil, na América Latina, África e em muitos países asiáticos estamos ficando para trás. É o que chamamos de “lacuna de adaptação”. Temos uma lacuna não só de conhecimento sobre risco e vulnerabilidade, como também no estabelecimento desses planos e na implementação deles. Essa negligência na atuação do poder público afeta as gerações futuras, já que pessoas que hoje têm menos de 30 anos sabem que irão vivenciar esses eventos extremos com muito mais frequência e intensidade. Se hoje elas já podem ver as consequências dessa crise climática na vida das pessoas, na economia, no setor privado e no mercado financeiro, em países que não tiverem políticas de adaptação, o cenário será muito pior.
No caso do Brasil, as recentes tragédias demonstram o atraso na implementação de políticas públicas para adaptação?
Estamos muito atrasados. Se um mesmo evento extremo afeta Pernambuco ou uma região dos Estados Unidos, por aqui temos um número muito maior de vidas perdidas, de danos econômicos e sociais, porque existe um desafio que é institucional, uma falta de governança específica e de vontade para agir na redução de riscos. Em geral, o que vemos é grande parte dos governos usando os recursos públicos para projetos de curto prazo como, por exemplo, de reeleição. Não há tanto investimento para projetos de contingência de riscos, e quando há, muitas vezes eles não são continuados.
Recife é historicamente uma das cidades mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas porque tem uma zona costeira que é afetada pelo aumento do nível do mar, o que provoca mudança na linha da costa, e é mais suscetível a secas extremas porque é uma área situada no Nordeste, onde o processo de desertificação é predominante. Já existe um projeto de resiliência em Recife, com diagnóstico e projeto, mas com ação ainda muito limitada.
Recife é a capital mais ameaçada do Brasil e a 16ª cidade mais ameaçada do mundo pelas mudanças climáticas com o aumento do nível do mar, segundo o IPCC. O que falta para que o projeto de adaptação seja colocado em prática?
É uma cidade que tem diagnóstico, já está na vanguarda, mas falta justamente uma vontade política. Existe uma necessidade de os gestores colocarem essa pauta dos riscos climáticos em prática, providenciando casas de interesse social para que essa população seja realocada, tendo um monitoramento para que não ocorra ocupações em áreas de risco, tendo ações de planos de contingência, ações em que você possa evitar que se perca mais vidas por conta de eventos como esse. Assim é em grande parte do país. Regiões da própria África, com níveis mais baixos de desenvolvimento, já estão melhores do que nós. Existem múltiplos perigos em escala macro, por causa das mudanças climáticas, mas também existe uma exposição por causa da negligência do poder público em estabelecer planos urgentes de mitigação, que tirem as pessoas das zonas de risco e deem segurança hídrica, alimentar.
Ainda é possível que as populações mais vulneráveis se adaptem a essas mudanças?
O relatório mostra que se o aquecimento global exceder 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais, as oportunidades de adaptação a muitos riscos climáticos serão cada vez mais limitadas e terão sua eficácia reduzida. Existe um alto nível de confiabilidade que esse é um limiar de aumento de temperatura pelo qual ainda podemos assegurar que algumas perdas e danos não sejam irreversíveis. Ultrapassando esse limite, por exemplo, ocorrerá uma perda de 90% dos recifes em todo o planeta. No caso de Pernambuco, eles têm um papel importante no amortecimento das ondas e são um berçário para recursos pesqueiros. Quando você perde isso, a segurança alimentar da população entra em risco, e esse é um processo irreversível. Nenhuma estratégia de adaptação humana é capaz de repor os serviços ecossistêmicos e a segurança que eles trazem.